TJ de São Paulo obriga o Club Paulistano a aceitar como dependente o companheiro gay cdaquele que já era associado
Por: ROSELI FISCHMANN
Supor-se acima da lei é atitude que pode ocorrer em nível individual ou institucional e pede enquadramento democrático. Por isso é exemplar e educativa a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, julgando apelação do Club Athletico Paulistano, deu ganho ao casal de médicos que acionou o clube para aceitar como dependente o companheiro gay daquele que já era associado.
Por que a resistência em incorporar espontaneamente decisão anterior do STF que reconhece a união homoerótica como família?
Uma alegação volta-se para a estrutura organizacional dos clubes: propriedade privada, associativa, gerida a partir de regulamentos próprios, nos quais o ingresso de novos associados tem suas normas. De entrevistas e indicações de sócios mais antigos à exposição de fotos e fichas em murais postados junto a áreas de grande circulação, o processo de aceitação constitui-se em um tipo de rito, com riscos de constrangimentos diversos, sem o que não se alcança o almejado paraíso.
À caracterização do clube como parte do direito privado, o TJ/SP deu a devida resposta: o Estado não fica fora do âmbito privado e deve regular as relações entre indivíduos e instituições, sempre que necessário para proteger o cidadão. Não há como uma assembleia de uma associação colocar-se acima da lei – o que, embora fato óbvio, precisou ser escrito em uma sentença por ainda vigorar a mentalidade de que alguns poderiam sentir-se inatingíveis. É desse mesmo tipo a importância da Lei Maria da Penha, que ensinou que em briga de marido e mulher se põe, sim, a colher, e o reconhecimento, no direito trabalhista, dos danos trazidos pelo assédio moral, colocando limites, no local de trabalho, ao suposto poder de patrões e chefes.
Por isso certos gestos têm gosto anacrônico. Celebrizada no passado por Ibrahim Sued (e quem mais?), a expressão “levar bola preta” refere-se à prática de clubes, com alguma inspiração na maçonaria, em que um grupo seleto, nata da nata, tem a prerrogativa de depositar, em urnas, bolas brancas, em sinal de aprovação, e bolas pretas, em sinal de reprovação do novo aspirante. O detalhe é que um mínimo de bolas pretas, depositadas anonimamente, garante a negativa ao ingresso; quanto mais exclusivo o clube, mais implacável: em alguns, uma bola preta basta para deter o pretendente. Na edição 18 de piauí, Consuelo Dieguez faz, em Invasões Bárbaras, uma narrativa de como até 2006 vigorou essa prática no Country Club do Rio de Janeiro e como a mudança se deu, pela necessidade do dinheiro novo, quando sobrenomes aristocráticos não mais garantiam as posses para a sobrevivência da associação.
Ser associado de um clube torna-se referência, inclusive em fichas de crédito, fazendo com que se ligue à composição da identidade. Contudo, há casos em que a falta de uma singularidade substancial, de cunho individual, exacerba a carência de pertencimento como fonte de identidade que se torna como “enxertada”, com a qual o grupo, ou o que se idealiza como “o grupo” e o que seriam “os pares”, passa a ser, para a pessoa, parte substancial de seu ser. Para esses, qualquer mudança nessa identidade institucional que lhe dá segurança é ameaçadora, em especial se composta com tabus.
Aqui fala a força do preconceito, que se compõe como mentalidade e cria muros que, embora invisíveis, seriam intransponíveis se não houvesse enfrentamento, tanto diretamente pelos que são discriminados, quanto por quem os apoia, ainda que não envolvidos pessoalmente, mas porque entendem que toda a cidadania é afetada quando uma injustiça é cometida, violando direitos que são de todos e todas, para todos e todas.
Se o preconceito é disposição psicológica, é sua estruturação em mentalidade coletiva que lhe confere força e perigo. Estereótipos são tomados como pressupostos e passam a valer como suposta verdade. Somado à hipocrisia reinante, facilmente pode se considerar que a figura de heterossexuais seria sempre virtuosa, em contraposição à de homossexuais, facilmente apontados como devassos, não merecedores do reconhecimento como entidade familiar. É a falta de reflexão crítica e de postura ética que leva a essa situação em que é preciso lei e decisão judicial, onde apenas o justo reconhecimento da dignidade do ser humano bastaria.
O mérito especial do casal Mário Warde e Ricardo Tapajós, além de sua disposição cívica de entrar nessa empreitada, é não apenas o que abre de caminho para outros, mas o combate ainda tão necessário contra a homofobia. O que se faz alegando âmbito privado, com toda liberdade rejeitando e renegando direito já estabelecido, repercute, mesmo indiretamente, em atos de violência, como o sofrido por jovem gay no bairro de Pinheiros, no mesmo dia e cidade em que se divulgava a sentença favorável aos médicos. Mesmo sendo tempo de celebrar, continua, portanto, o tempo de trabalhar e combater a intolerância.
ROSELI FISCHMANN | COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO E DOCENTE DA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA USPRV
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Fonte: Estadão