Vitória em Goiás, derrota em São Paulo: “resoluções” de casos de estupro

Universidade Federal de Goiás demite professor acusado de estupro, enquanto o Tribunal de Justiça de São Paulo decide nesta quinta se mantém a absolvição do médico e ex-aluno da USP, Daniel Tarciso da Silva Cardoso, acusado pelos estupros da Medicina

Por Marina Ganzarolli, do Justificando 

Foto: Divulgação/UFG

 

Na última quinta (12) foi finalmente publicada a demissão do ex-professor Rogério Elias Rabelo da Universidade Federal de Goiás, do campus de Jataí.[1]Em 2017, Rogério foi denunciado por estupro e assédio sexual contra três alunas. Sua demissão é o resultado de um longo caminho, percorrido com altos custos para todas as envolvidas, em especial para as sobreviventes. Não existe “final feliz” em caso de estupro, mas o mínimo de reparação que se pode esperar é que a Justiça seja feita. Depois de 14 meses de Processo Administrativo, podemos falar com muito orgulho: vitória em Goiás!

São Paulo já não pode dizer o mesmo. Na manhã desta quinta (19), no Tribunal de Justiça de São Paulo, será julgado o recurso contra a absolvição do ex-aluno e hoje médico Daniel Tarciso da Silva Cardoso.[2] Fruto de uma história igualmente assustadora, este caso chocou a comunidade acadêmica, durante a CPI das Violações de Direitos Humanos nas Universidades Paulistas, que não à toa, ficou conhecida como CPI dos Trotes. Acusado de pelo menos seis estupros e com histórico de comportamento violento, Daniel foi absolvido em primeira instância pelo juiz Klaus Marouelli Arroyo, da 23Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 7 de fevereiro de 2017, por falta de provas. A palavra da vítima contra a palavra do agressor. Um caso paradigmático da ineficácia da resposta do Estado, do Judiciário e das Universidades à violência sexual contra a mulher.

O estupro não diz respeito à afetividade ou intimidade, e sim a uma relação de poder desigual entre homens e mulheres, à dominação masculina sobre a mulher.[3] Trata-se de uma forma de controle da liberdade e da sexualidade femininas, e de conformação dos corpos das mulheres cisgêneras e transexuais.[4] A superação deste tipo de violência passa obrigatoriamente por uma profunda transformação cultural, e pela necessidade de garantir uma educação não-sexista que seja de qualidade, ampla e universal, e que abarque não apenas o debate de gênero, mas consentimento, violência, bullying, educação sexual, identidade de gênero, orientação de gênero, planejamento familiar. Algo que parece cada vez mais distante diante da retirada do termo gênero no Plano Nacional de Educação e do avanço do Projeto de Lei da “Escola Sem Partido” no Congresso Nacional.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada cinco mulheres com menos de 18 anos já foi vítima de estupro ou outra violência sexual. No Brasil, as mulheres adultas representam 32% das vítimas e é entre elas que ocorre a maior prevalência de agressores desconhecidos ou de fora do seu círculo afetivo. Duas em cada 13 vítimas já sofreu estupro coletivo e, segundo o Atlas da Violência 2018, as mulheres brasileiras são vítimas de estupro mais de uma vez na vida: de cada 10 vítimas atendidas pela rede de saúde em 2016, quatro já tinham sido estupradas antes.[5]

Ainda que os dados não sejam precisos, estima-se que sejam cometidos meio milhão de estupro por ano, dos quais apenas 10% são notificados.[6] Com tamanha sub-notificação, é seguro afirmar que a maioria dos casos de estupro não são registrados oficialmente e, portanto, não são sequer considerados nas estatísticas.[7] Considerados um dos maiores problemas para o enfrentamento da violência sexual contra a mulher, a sub-notificação só ocorre porque persistem as barreiras culturais e sociais que oprimem as mulheres. Existe um custo muito alto que a vítima que denuncia seu agressor tem que arcar sozinha. A revitimização, a culpabilização, as novas violências, os exames, os custos com advogada, transporte até delegacia, audiência, saída do trabalho, a necessidade de falar sobre o assunto várias vezes e para diversas pessoas, a possibilidade de absolvição do agressor, de ser processada por ele por difamação, para citar apenas alguns.[8]

Nos casos de Goiás e São Paulo não foi diferente.

No caso de Goiás, somente após a exposição pessoal de uma das sobreviventes, que deu um depoimento público espontaneamente em maio de 2017, gerando grande repercussão, o caso foi levado à sério pela Universidade e foi instaurado Processo Administrativo. Já havia denúncias na Ouvidoria da UFG, mas nada foi feito. Durante os 14 meses de investigação interna, sucessivas oitivas das alunas, que foram discriminadas, questionadas e culpabilizadas durante todo o processo.Graças à articulação de professoras e juristas feministas, o Ministério Público Federal, em um trabalho espetacular que lhe rendeu uma premiação nacional, a fim de verificar possível improbidade administrativa de servidor federal, envolveu-se na investigação, o que resultou no primeiro caso de estupro no Brasil a ser julgado no âmbito do Poder Judiciário Federal (TRF 1, Processo 0001245-40.2017.4.01.3507).[9]

Graças ao suporte desta rede de mulheres, mesmo que sob enorme pressão e enfrentando todos os sintomas de estresse pós-traumático, as sobreviventes denunciaram o professor criminalmente na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Goiânia e recentemente foi aceita a denúncia por estupro de vulnerável das duas alunas pela 8ª Vara de Criminal de Goiás – Crimes Punidos com Reclusão, onde aguarda julgamento.[10]

No caso de São Paulo, a mesma omissão: a vítima procurou a Justiça em 2012, mas o caso só foi investigado pela Universidade depois da CPI, em 2014, instaurada por iniciativa do então Deputado Estadual Adriano Diogo. A investigação da CPI do Trotes, levada à cabo graças a uma iniciativa externa à Universidade, documentou denúncias de racismo institucional e de uma cultura do estupro, concluindo que “112 estupros em 10 anos” teriam sido cometidos “no chamado ‘quadrilátero da saúde’, área da USP onde estão concentradas, no Bairro de Pinheiros, na Capital paulista, as faculdades ligadas às Ciências Médicas”.

Durante a CPI surgiram pelo menos 6 denúncias de estupro contra Daniel Tarciso, mas nem todas foram formalizadas, diante do medo de retaliação. Daniel Tarciso é ex policial militar e foi acusado de homicídio com arma de fogo, quando estava fora de serviço, durante o carnaval. O TJSP o absolveu reconhecendo “legítima defesa com uso excessivo da força”: ele realizou 10 disparos contra uma pessoa desarmada e supostamente a discussão teve início por motivação homofóbica. Em todos os casos de estupro contra ele denunciados foi observado mesmo modus operandi: ele oferecia bebida adulterada para as vítimas e depois as estuprava enquanto estavam desacordadas.

Após a CPI, Daniel Tarciso foi suspenso um ano, e depois novamente por seis meses. Mas acabou se formando em cerimonia arranjada na surdina em fevereiro de 2017. Teve o registro médico negado pelo CREMESP, mas conseguiu obtê-lo em Pernambuco e hoje exerce a prática médica na cidade de São Paulo normalmente.

Uma das únicas sobreviventes que se dispôs a denunciá-lo formalmente foi chamada a depor no processo administrativo pelo menos 8 vezes ao longo de 2 anos. Existem vastas pesquisas que demonstram as consequências do estresse pós-traumático nos depoimentos de vítima de violência sexual, que são usualmente fragmentados e não-lineares. Cada vez que a vítima conta o episódio de violência ela revive as sensações do evento traumático, sentindo culpa, nojo, medo, asco, tudo vem à tona novamente. Exigir essa quantidade de depoimentos de uma sobrevivente é tortura. E ainda assim ele não foi jubilado da USP. Pelo contrário, estamos assistindo de camarote a emergência do próximo Roger Abdelmassih.

Mas existe luz no fim do túnel. Graças à CPI, surgiu na Universidade de São Paulo um grupo de professoras e pesquisadoras contra a violência, a Rede Não Se Cala, e a Reitoria criou o escritório USP Mulheres, hoje coordenado pela professora Eva Blay, que entre outras ações,  firmou o acordo “He For She” da ONU e recentemente publicou uma excelente pesquisa sobre discriminação e violência na USP.[11] Em Goiás, a UFG também tomou medidas contra o assédio sexual e moral dentro da instituição, com a publicação de uma resolução específica sobre o tema (Resolução CONSUNI 12/2017).

Mas antes que a Universidade possa ser um lugar mais acolhedor para as mulheres no futuro, uma sobrevivente de estupro que, contra tudo e contra todos, escolheu denunciar seu agressor, teve que ver seu abusador se formar e sair ileso. Teve que ouvir de um juiz de direito que sua palavra não valia o suficiente, que ao concordarem entrar no apartamento do réu ela muito provavelmente consentiu com o ato sexual. Ela abandonou o curso, ficou doente (quem não ficaria?) e hoje sua mãe estuda Direito, numa tentativa desesperada – e comovente – de tentar entender o porquê sua filha não viu Justiça ser feita contra seu algoz.

Amanhã, às 9h na manhã, em frente ao Tribunal de Justiça, acontecerá um ato pela condenação do Daniel.[12] O desembargador Mauricio Henrique Guimarães Pereira Filho da 5a Câmara de Direito Criminal, tem a chance de mudar essa história. Ele marcou às pressas o julgamento da apelação, entre férias, Copa do Mundo e eleições, ao que poderia parecer à distância, uma manobra para engavetar o caso. Em nome desta vítima e de todas as mulheres que sofreram ou não violência, espero que eu esteja errada.

Marina Ganzarolli é advogada, doutoranda e mestra em Sociologia Jurídica pela FDUSP, cofundadora da Rede Feminista de Juristas – DeFEMde, foi depoente na CPI dos Trotes e uma das primeiras a conversar com uma das sobreviventes de Goiás.

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