Viva a igualdade, com diversidade

Na última segunda, Demi Getschko, um dos pioneiros da internet no Brasil e atualmente diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), responsável pelos censos nacionais de internet e pelo financiamento de pesquisas sobre o tema no Brasil, publicou no Estadão o texto “Viva a diferença!”, sobre questões de gênero no setor de Tecnologias da Informação. Entre os argumentos centrais, Demi afirma que “sobrevivemos e evoluímos darwinianamente para nos tornarmos o que somos. Fatores culturais são importantes e é vital sua revisão cuidadosa, mas isso não passa por ignorar a biologia.”

Por Coding Rights Do Brasil Post

Tal argumento é utilizado para refutar campanhas que visam a “distribuição igual nas ocupações entre sexos”, o que Demi considerou “errado” e “perigoso”, por tender à homogenia. Mas, na percepção de muitas e muitos, essas afirmações também podem ser consideradas “erradas” e “perigosas”.

Demi é um pensador respeitado e que, por ocupar tal posição de liderança na política e história da Internet no Brasil, tem uma responsabilidade ainda maior de ser cuidadoso (e tem sido) em suas posições. Mas, desta vez, ainda que não fosse intenção, seu texto abriu margem para interpretações diversas, dando espaço para desentendimentos sobre o valor de políticas que valorizam a igualdade e os Direitos Humanos.

Assim, para apresentar diversas perspectivas sobre o assunto, e garantir que a pauta seja coberta de maneira ampla, rodamos a pergunta abaixo para várias mulheres do Brasil que atuam nas áreas de TI:

Por quê você acha importante que haja mais diversidade na área de TI? Você acha errado e perigoso dizer que o fator biológico determina a vocação profissional? Por quê?

“Ambientes sem diversidade geram perdas econômicas. Isso é um problema no Vale do Silício e é um problema ainda pior no Brasil. Em ambientes homogêneos – o que vivemos é um exemplo: essencialmente masculino e hetero – a inovação fica limitada. Incentivar a mistura como instrumento de incentivo a inovação e a criatividade é uma obrigação de quem ocupa cargos de influência. Hoje não há divisão de poder entre gêneros. Apesar de termos uma presidenta, as mulheres, maioria no Brasil, não representam nem 10% em qualquer foro decisório relevante. Isso sim é um problema para o país, e não as politicas afirmativas.”

Marie L., desenvolvedora

“O Brasil ainda é um país machista. Em um país machista, se você for menina e quiser brincar de robô, entender a mecânica dos carrinhos, mexer no aparelho de som do pai, desmontar e reformar sua bicicleta, mudar o sistema operacional do computador, que provavelmente é do irmão mais velho, etc vai ser vista como uma menina “estranha”. Afirmar que não há nada de mal ou estranho neste tipo de interesse, infelizmente, ainda é importante, pois esses fatores culturais, e não a biologia, restringem sim a ampliação da participação de mulheres neste campo. Neste contexto, ações afirmativas e criação de espaços femininos de discussão de tecnologia são fundamentais para fomentar a diversidade do setor. Diversidade só vem com igualdade de oportunidades.”

Joana Varon, pesquisadora fundadora do Coding Rights e membra do grupo ciberfeminista DeepLab.

“No último ano, recebemos no Olabi Makerspace, no Rio de Janeiro, mais de 1200 pessoas em nossos cursos, oficinas, palestras, rodas de conversas, atividades voltados ao entendimento e apropriação de novas tecnologias. Boa parte dessas pessoas eram meninas, moças, senhoras, mulheres, no geral, que chegam sempre muito animadas em aprender um universo novo. Após algumas horas aprendendo a soldar, programar um Arduino ou um jogo o que mais ouvimos delas é “por que eu não brincava com eletrônico desde criança?”, “como eu queria voltar a ser criança hoje para brincar de roominate” (em referência ao brinquedo criado para meninas que refaz uma casinha, trazendo conceitos de eletrônica e programação) e coisas do gênero. Essa nossa experiência empírica somada à declaração do Demi, por quem tenho muito respeito e admiração, me faz pensar que as ciências, a tecnologia, a matemática, a programação de computadores são fascinantes para as pessoas de todos os gêneros, mas ainda temos um caminho muito longo a percorrer em conseguir garantir que elas tenham acesso e igualdade de oportunidades.”

Gabriela Agustini, diretora do Olabi Makerspace, empresa social focada em apropriação de novas tecnologias com sede no Rio de Janeiro.

“Políticas afirmativas que busquem eliminar barreiras e criar homogeneidade (de oportunidades) – mesmo que simbólicas e não ideais – servem para devolver ao indivíduo o poder de escolha que lhe foi limado por determinismos culturais, e não biológicos, como as políticas que buscam trazer mais mulheres para a TI. Diversos aspectos da tecnologia da informação como hacking, cyberstalking, pornografia, assédio e linchamento online, privacidade, etc possuem uma dimensão de gênero pouco explorada. A apropriação das tecnologias de informação em suas diferentes dimensões de gênero contribui para o desenvolvimento mais responsável e inclusivo da tecnologia desde sua concepção.”

Marília Monteiro, pesquisadora e co-fundadora DOMA que tem por objetivo análise, diagnóstico e propositura de soluções para questões relacionadas aos efeitos da inovação e desenvolvimento tecnológico para os direitos humanos.

“É fato conhecido que as mulheres que decidem optar por carreiras mais ligadas às exatas, como Engenharia ou Ciência da Computação, encaram barreiras como o preconceito de gênero e acabam desistindo do curso, o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) levantou que 79% das mulheres que ingressam em cursos relacionados à área de TI abandonam a faculdade ainda no primeiro ano. Peço que levemos em consideração o pioneirismo de Ada King (Lady Lovelace) ou o de Grace Marie Hopper, que desafiaram o normativo implícito de que só homens trabalhariam na área de TI.”

Bruna Martins, integrante da primeira turma do Curso de Curta Duração da Escola de Governança da Internet do CGI.br.

“O texto desconhece ou omite propositalmente que mulheres tem remuneração até 30% menor que homens em TI e pouquíssima presença em cargos em chefia. A discussão vai muito além de proporções de representatividade “biológicas”. Já em 2002 caracterizava-se essa luta: “trata-se da tomada de poder das mulheres invisíveis”. São hackers, programadoras, administradoras de sistema, engenheiras de software, profissionais de robótica e muitas outras mulheres que querem o que, por direito, também é seu.”

Renata Aquino Ribeiro, professora adj. UFCE Campus Quixadá

“Gostaria de começar pelo ponto do texto do Demi com que concordo: lutar por direitos iguais não é o mesmo que lutar por homogenia. De fato, interpretar os movimentos/campanhas/ projetos que incentivam a entrada e permanência das mulheres nas áreas de tecnologia como uma luta por homogenia é um equívoco perigoso. Equívoco porque o que temos atualmente é, justamente, homogêneo: masculino, branco, heterossexual. Incentivar a diversidade de gênero, raça e orientação sexual, isso sim é heterogeneizar. Ignorar que existem diferenças (concretas e simbólicas) de oportunidades, ignorar que houve um esvaziamento feminino na área de TI assim que ela ganhou importância econômica e social, e ao mesmo tempo celebrar a diferença, parece nada mais que estratégia para preservar privilégios. Vamos olhar quantas mulheres sentam às mesas nos Fóruns que discutem estratégias de governança da Internet no Brasil? E quant@s negr@s? E como é a composição do CGI.br? Enfim, espero chegar o dia em que essa celebração da “diferença” entre homens e mulheres (ou machismo) será tão evidentemente reconhecida como algo finalmente superado como as teorias de que negros e índios tinham “aptidão nata” à escravidão por razões biológicas.”

Haydée Svab, hacker, engenheira, co-fundadora do PoliGNU – Grupo de Estudos de Software Livre da Poli-USP e do PoliGen – Grupo de Estudos de Gênero da Poli-USP

“Acredito que o grande furo do texto foi não entender que lutar por mais meninas na tecnologia pode mudar drasticamente o cenário familiar delas e da indústria de TI, pois vamos começar a resolver problemas que não seriam resolvidos. Não luto simplesmente para equilibrar um número e poder gritar aos 4 ventos que 50% da indústria é composta por mulheres. Luto para que essa oportunidade não seja, afinal, uma mensagem deturpada de tecnologia.

Camila Achutti, fundadora do Mulheres na Computação e Embaixadora do Technovation Challenge Brasil.

“A diversidade é fator crucial de sobrevivência – inclusive biologicamente. Ter brancos, negros, homens, mulheres, gays, trans e todo o espectro (infinito) de possibilidades trabalhando na TI é fator fundamental para o avanço das redes, das comunidades e da mudança que estamos operando no mundo. Além do que, a biologia se seleciona DENTRO da cultura. E, claro, é influenciada por ela, porque uma coisa a genética já sabe: somos tanto natureza como cultura. 50-50, inclusive – e uma coisa influencia a outra (…) O futuro, não tenho dúvidas, será de todos e para esse destino (biológico) se realizar, teremos que aprender tanto biologia como TI – todos nós.”

Lucia Freitas, jornalista e blogueira, é fundadora do LuluzinhaCamp, um dos primeiros coletivos de mulheres da internet brasileira.

“Projetos de incentivo à participação de mulheres e minorias, como o Outreachy, tem resultados muito positivos. Tanto o interesse das mulheres no programa de incentivo é grande, quanto o interesse de mulheres nos projetos de desenvolvimento em geral aumenta porque o ambiente se torna mais receptivo. Antes do início do Outreachy, a Wikipedia teve uma participante mulher no Google Summer of Code (GSOC) em todas as edições, um projeto que não é direcionado a mulheres. Depois do Outreachy o número de inscrições para esse programa aumentou para 7. Isso indica que há uma demanda reprimida, que as mulheres se interessam sim por tecnologia, mas que nem sempre se sentem à vontade de escolher esse caminho.”

Luciana Fujii, desenvolvedora, participante do grupo mulheres na tecnologia, participou do Outreachy em 2010, mentora do GSOC em 2011 .

“Fui atrás dos dados citados sobre a Noruega e encontrei alguns papers de estudos sobre que foi apontado. Realmente, a Escandinávia inteira tem problemas relacionados a quantidade de mulheres programadoras – apesar de todas as suas políticas de igualdade social em outras áreas. O que se apontou nesses estudos é que os países emergentes, como o Brasil, a China e a Rússia, tem mais mulheres fazendo carreira dentro da TI do que a Noruega, a Finlândia e a Suécia. A causa apontada é que as políticas de inclusão nórdicas focam apenas os cargos de conselho executivo, e o maior problema é o gap que fica entre quem está no ‘meio’ dessa cadeia, que fica sem assistência.”

Vanessa Guedes, desenvolvedora e fundadora da Plano Hype e do MariaLab Hackerspace. Entusiasta do open source e das políticas públicas para inclusão de mulheres nas áreas de Ciência e Tecnologia. Atualmente mora em Estocolmo, Suécia.

“Que estranho raciocínio este de que pode haver um determinante biológico para exercer profissões ligadas a TI… estranho porque é a migração da ideia de ‘limites femininos’, que antes era mais forte em coisas ligadas à força física, para as atividades intelectuais. Além de ser um pouco atrasada em relação ao que a humanidade já conseguiu pensar sobre determinantes biológicos (há de se ler um pouco de Simone de Beauvoir ou ler mulheres, para variar!), ela expande o senso comum do machismo para todo um setor, cada vez maior e mais entranhado em nossas vidas, da inteligência humana… Que pena ler isso :(“

Patrícia Cornils, hacker, jornalista, participante de várias comunidades.

“Nesse tipo de argumento, a “natureza” aparece como um dado imutável – a não ser pela evolução biológica, que estaria fora do nosso controle. Joga-se na conta do biológico o que é desagradável de discutir: que a educação de meninos e meninas é diferente desde casa, ou que alguns ambientes são extremamente hostis às mulheres. Ou seja, como precisamente o que se chama de biologia tem raízes em hierarquias socialmente impostas aos sexos.”

Mariana Giorgetti Valente, coordenadora de pesquisa no InternetLab .

“Não se fala aqui em “forças da natureza”, mas em “forças da sociedade”. São estas que tentam nortear o papel que cada gênero deve ter em uma comunidade, e o apoio a um suposto determinismo biológico apenas fortalece uma noção limitadora e errada do potencial feminino.”

Bruna Castanheira, consultora jurídica em novas tecnologias e pesquisadora independente

“Aceitar o argumento de que a discriminação biológica determina a vocação profissional é naturalizar o argumento de que existem capacidades técnicas diferenciadas para homens e mulheres, reforçando o estereótipo da divisão de setores na área: enquanto eles cuidam majoritariamente das partes mais sofisticadas (desenvolvimento de software, inovação, gestão de redes), elas cuidam da parte de design e suporte (análise, desenho de interfaces, controle de qualidade, front-end, etc), posicionamento que vai na direção oposta de incentivar e estimular mulheres a serem protagonistas desses espaços.”

Carine Roos, jornalista e entusiasta do conhecimento livre, é uma das co-fundadoras do MariaLab e membro do Garoa Hacker Clube.

“Gostaria de entender a qual “biologia” Demi faz referência. À nossa menstruação? Ao fato de que ficamos grávidas e carregarmos por nove meses os futuros profissionais? Se formos por ai, vale lembrar que o cérebro feminino possui 9.5 vezes mais matéria branca, aquela responsável por fazer conexões cerebrais! Sim, somos em todos os sentidos mais conectadas! E lembrar também que foram as mulheres em TI que levaram o homem ao espaço! Pois é, programadores líderes da missão Apollo e do SkyLab eram mulheres. O que se tem que ter em mente é que uma sociedade igualitária e despreconceituosa adapta-se às necessidades “biológicas” de ambos os sexos, seja elas quais forem.”

Carolina Rossini, Direito-USP, MA Unesp/Unicamp, MBA, LLM. Vice Presidente para Politica Internacional na Public Knowledge. Washington, DC.

“TI sempre foi uma área cheia de mulheres, principalmente durante o período entre guerras. Essa coisa de que mulher teria algum tipo de dificuldade com matemática não tem sequer 50 anos de idade. É mentira que homens e mulheres tenham um imperativo biológico para exercer funções determinadas como “inatas” na sociedade ocidental.”

Lanika Rigues, Desenvolvedora, designer, membra do Marialab Hackerspace, LuluzinhaCamp, Bruxas da TI, participante do Garoa Hacker Clube e várias outras comunidades ligadas a TI, Empreendedorismo e Feminismo.

“O erro já está em falar de gêneros como se eles fossem binários e apenas biologicamente construídos. Existe muita construção social atrelada que nos faz acreditar que o gênero feminino e masculino são únicos, opostos e complementares. E essa, além de machista, é uma forma muito simplista de ver o ser humano.”

Jussara Oliveira, analista de sistemas, mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade na UFSCAR e integrante da coordenação do blog coletivo Blogueiras Feministas.

“Para mudar a participação feminina nas áreas de TI são necessárias mudanças estruturais dos papéis de gêneros na sociedade. Este artigo só serve para comprovar que precisamos muito mais que políticas de igualdade para uma real inclusão, precisamos alterar comportamentos, conceitos e argumentos como o tal do “determinismo biológico” descrito no texto.”

Fernanda Shirakawa, membra do MariaLab Hackerspace, conselheira do Coding Rights e incentivadora do Femhack.

“Errado e perigoso não é buscar equidade de acesso às diferentes carreiras, mas deixar de lado muitos anos de reflexão e disputa de teorias de gênero. A ideia de existirem profissões que seriam melhor ocupadas por homens e mulheres vem sendo modificada graças à muito diálogo crítico e empenho de diversas pessoas, mas o caminho ainda é longo. Quanto mais longe estivermos do puro determinismo biológico (que deixa de lado fatores cultuais, sociais e econômicos), mais próximas estaremos de realizar um debate profundo e as mudanças necessárias.”

Jhessica Reia, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (CTS-FGV).

“Hoje, no primeiro dia do V Fórum da Internet no Brasil, verificamos nas duas mesas já apresentadas, a presença residual de mulheres, apenas 2 entre os 10 componentes. No entanto, a proporção não se repete entre os participantes. Isso demonstra que a participação das mulheres brasileiras tem crescido, e necessita de mais respeito e apoio da sociedade.”

Margareth Kang, Mestranda USP.

“A leitura do artigo me deixou triste e feliz. Triste porque me espanta que uma autoridade da internet no Brasil use um espaço nobre de jornal para trazer argumentos puramente biológicos para “explicar” a desigualdade de gênero em profissões como tecnologia ou engenharia. Algo que vai na contramão de muitas iniciativas que estamos vendo surgir, como, por exemplo, o GEM-TECH, na ONU. E fiquei feliz porque acho bom quando opiniões assim vem à tona, isso permite debates e reflexões fundamentais sobre diversidade, gênero e empatia na sociedade contemporânea, especialmente nas escolas e em outros espaços educativos.”

Priscila Gonsales, educadora e jornalista, fellow Ashoka, fundadora do Instituto Educadigital, atua com educação na cultura digital desde 2001.

Conforme apontaram os posicionamentos por aqui, ainda há muito que se discutir para atingir um status de igualdade, com diversidade no setor, esperamos que esse pot-pourri de visões que se complementam e dialogam sirva então para inspirar e aprofundar um pouco mais qualquer discussão sobre igualdade de gênero no setor de TICs e além.

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