Vivemos um embate entre aspirações, frustrações e ressentimentos

A concretização das aspirações de justiça é que cimenta a vida em sociedade

FONTEPor Oscar Vilhena Vieira, da Folha de S. Paulo
Oscar Vilhena Vieira, professor e cientista político (Foto: Jardiel Carvalho /Folhapress)

A construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” constitui um dos objetivos fundamentais de nossa República, ao lado da “erradicação da pobreza”, da “redução das desigualdades”, da “garantia do desenvolvimento” e da eliminação de “quaisquer formas de descriminação”.

São anseios legítimos e ambiciosos, incrustados no artigo 3º da Constituição de 1988, que deveriam condicionar as ações de todos os cidadãos, mas especialmente daqueles que se propõe a exercer funções de governo.

Todas as leis, desde as mais antigas —gravadas em placas de argila na Mesopotâmia, há 4.000 anos—, têm a pretensão muito prática de contribuir para solucionar conflitos e ordenar a sociedade. As grandes leis, por sua vez, também assumem uma segunda função, de natureza simbólica, ao projetarem aspirações de justiça de uma determinada comunidade, contribuindo, dessa maneira, para cimentar um destino comum dos seus cidadãos.

Desde a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, Constituições e leis modernas traçam objetivos morais e políticos muito ambiciosos, que devem condicionar o exercício do poder pelas autoridades. Essas elevadas aspirações, quando não são devidamente implementadas, podem gerar um forte desencantamento com a democracia. Parte da crise das democracias contemporâneas pode ser atribuída ao que Norberto Bobbio chamou de promessas não cumpridas.

Há, porém, um fenômeno psicológico que vai no sentido inverso ao da frustração pelas promessas não cumpridas. Trata-se do ressentimento decorrente das transformações que ocorreram. Ainda que os avanços e conquistas promovidos pela democracia sejam lentos e insuficientes, eles podem causar a desestabilização de estruturas hierárquicas e de privilégios de determinados setores, aferrados a uma ordem patriarcal, desigual, racista e oligárquica.

Digo tudo isso pois vivemos nesses últimos dias um embate entre aspirações, frustrações e ressentimentos. Numa semana pautada pela luta das mulheres por seus direitos, pela aspiração por um mundo mais justo e por denúncias das injustiças e desigualdades que persistem nos campos do trabalho, da distribuição das atividades domésticas, da violência sexual ou do exercício do poder, testemunhamos também uma reação bizarra e criminosa do deputado federal mais votado do Brasil, ressentido com os avanços decorrentes do reconhecimento dos direitos humanos de um grupo historicamente discriminado.

Isso demonstra o quanto avançar no Brasil é difícil. O quanto setores hostis à ideia de igualdade, autonomia, diversidade, pluralismo e à própria ideia de democracia estão dispostos a obstruir processos de emancipação e democratização da sociedade brasileira.

Nesse cenário, o principal desafio da democracia brasileira é aumentar a sua capacidade de cumprir suas promessas básicas, diminuindo a distância entre aspirações e as experiências cotidianas dos cidadãos.

O segundo desafio é convencer os setores mais privilegiados da sociedade brasileira de que a prosperidade, a sustentabilidade econômica, a paz e a estabilidade social só serão alcançadas com a melhoria geral nos padrões de vida da população, assim como com maior respeito à diversidade e aos direitos de todos.

A concretização das aspirações de justiça é que cimenta a vida em sociedade. Fora disso estaremos fadados a um profundo processo de regressão.

Nesta semana que marca a luta pelos direitos das mulheres, dedico a coluna a Margarida Genevois, Sueli Carneiro e Amelinha Teles, que têm incansavelmente nos inspirado e nos ensinado como construir um mundo mais justo.

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