‘Você não disse que era preta’, disse homem em encontro

A solidão gera danos emocionais às mulheres e tem sido cada vez mais discutida dentro do feminismo negro Foto: Arte de Lari Arantes

Racismo estrutural e machismo levam mulheres negras brasileiras à rotina de exclusão afetiva. Segundo o IBGE metade delas não vive em união conjugal

Por Naíse Domingues, do O Globo 

 

A solidão gera danos emocionais às mulheres e tem sido cada vez mais discutida dentro do feminismo negro Foto: Arte de Lari Arantes

A cineasta Rosa Miranda marcou um encontro com um homem com quem já se correspondia na internet. Durante o período que passaram juntos, notou que ele não estava confortável. Ao se despedirem, Rosa descobriu que o motivo do incômodo era a cor de sua pele: “Você não disse que era preta. Não sou racista, mas pela mentira não vou ficar com você”, disse o homem.

A história de Rosa não é estranha para as mulheres negras. Desde a infância, elas convivem com a rejeição criada por uma combinação de racismo estrutural e machismo. Crescem sentindo-se excluídas por não corresponderem ao padrão de beleza tido como ideal e por não serem as escolhidas para “ficar” ou namorar. Uma solidão que gera danos emocionais e que tem sido cada vez mais discutida dentro do feminismo negro. O último censo demográfico realizado pelo IBGE, em 2010, comprova essas narrativas: mais da metade das negras não vive em união conjugal.

– Isso vem desde a infância. Na pracinha, a criança negra fica afastada porque as outras não brincam com ela. É uma exclusão que continua na vida adulta: às vezes, queremos uma amiga para conversar, mas não somos facilmente aceitas no grupo. Em muitos espaços nos sentimos sozinhas mesmo sendo maioria. E, quando abordamos o assunto, tem gente que tenta relativizar, o que gera ainda mais afastamento – explica Rosa.

A reprodução de estereótipos, como o da guerreira inabalável que não precisa de empatia, e a objetificação dos corpos das mulheres negras ajudam a explicar a solidão que elas experimentam. Um cenário que se agrava quanto mais retinta é a pele:

– A negra mais aceita é a de pele mais clara, quase branca, dentro do padrão do estereótipo da mulata. Mas, como diz a poeta Elisa Lucinda, essa não é para casar, é para comer. Não somos o par ideal, e isso nos machuca ao longo da vida – diz Luciana Fernanda Luz, feminista negra e mestranda em Comunicação, que identifica o porquê da solidão em diversos aspectos da vida cotidiana das mulheres negras. – No trabalho, é comum enfrentarmos assédio sexual e também o moral em forma de piadas racistas. Nos relacionamentos, somos frequentemente preteridas por mulheres brancas. Em casa, somos as fortalezas que não encontram acolhimento. São muitas nuances para dar conta; temos que nos reinventar todos os dias.

Fogosas, guerreiras e raivosas

Questões raciais e de gênero têm construído narrativas sobre as mulheres negras desde o período colonial. Faz parte do imaginário social a imagem da mulata fogosa, altamente sexualizada, que cria barreiras na consolidação de relacionamentos afetivos saudáveis e também contribui para fomentar a cultura do estupro. O Dossiê Mulher, divulgado em 2015 pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, aponta que 56,8% das vítimas de estupro no estado são negras; dentre as vítimas de homicídio, elas são 62,2%.

Estas imagens não são construídas apenas internamente, mas são parte de um produto vendido para o resto do mundo. Gleide Davis, feminista negra e graduanda de Serviço Social, acredita que o turismo sexual no Brasil está profundamente atrelado à imagem da “mulata tipo exportação”:

– As mulheres negras não são vistas como cidadãs dotadas de direitos, somos vistas como pedaços de carne. A “nega maluca” e afins são produtos que evidenciam como nossa imagem é exposta socialmente.

Já a figura da negra forte e guerreira leva a uma outra barreira: a falta de empatia. A imagem da mulher fragilizada, tão cultivada pelo machismo, parece não valer para elas, a quem historicamente são atribuídos o trabalho braçal de menor remuneração e a função de servir. Elas cuidam, mas não são passíveis de cuidado, o que, além de servir de justificativa para a violência, gera um ambiente de exclusão e abandono emocional.

Esta dinâmica pode ser ainda mais cruel quando mulheres negras estão em espaços considerados da elite. A cineasta Rosa Miranda percebe a dificuldade dos outros em enxergá-la como parte dos ambientes que ocupa. Ela já foi confundida com a empregada da casa e recebeu propostas para fazer programas. Por se defenderem das consequências desse tipo de caricatura, muitas mulheres negras são rotuladas de raivosas – mais um estereótipo que reforça sua solidão.

Reconstrução da autoestima

As consequências dessa cadeia de exclusão chegam aos cuidados com a saúde. Estima-se que 54,1% das mortes maternas no Brasil ocorrem entre jovens negras entre 15 e 29 anos.

– Os números mostram que o racismo estrutural coloca as mulheres negras em clara desvantagem no acesso à cidadania, mas essa exclusão sistemática também as submete a relações danosas, que podem levar à violência doméstica, sexual e até mesmo ao feminicídio – diz Gleide Davis.

Criar espaços para acolhimento e discussão dos problemas estruturais que atingem as mulheres negras é fundamental para a reconstrução de sua autoestima.

– Devemos refletir sobre a nossa experiência estética na infância e na adolescência para mudarmos a autoestima das novas gerações. É também importante construir novos espaços políticos para discutirmos a transformação da sociedade em um espaço seguro onde as mulheres negras possam crescer longe das diversas formas de violência – diz Gleide.

* Estagiária sob supervisão de Renata Izaal

 

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