Voltando para casa

Foto: Marta Azevedo

Nas semanas iniciais do isolamento social, Sabrina Fidalgo, mulher negra, cineasta premiada dentro e fora do país, demoliu numa live a ideia de que é chegada a hora dos filmes nunca vistos, dos livros jamais lidos, aquele rol de tarefas habitualmente elencadas para quando a aposentadoria chegar. (Num passado remoto, sonhei estudar produção de roteiros durante a licença- maternidade. A carreira jornalística sedimentada nas duas décadas seguintes é evidência da ilusão.) Com sabedoria desconcertante, ela dispensou o retrovisor: “Interessa o agora. O presente vai determinar o que virá. Então, me ocupo de acompanhar o que as pessoas estão fazendo nessa temporada em casa. Quero pensar novas narrativas a partir daí”.

Foto: Marta Azevedo

Da casa emerge a profusão de reflexões quarentênicas: famílias recolhidas, assimetrias e mazelas escancaradas. A começar pela própria compreensão sobre a palavra. Casa nem sempre é sinônimo de lar, tampouco o espaço demarcado pelas tais quatro paredes. Em aldeias indígenas e quilombos, casa é o ambiente, não a área de confinamento. Em favelas e periferias, tomadas por construções densamente povoadas — no Grande Rio, a Casa Fluminense estimou em 300 mil o total de domicílios com mais de três pessoas por cômodo —, rua é espaço de convivência como são as salas de estar da classe média alta. Isso precisa ser levado em conta por autoridades que, para prevenir a Covid-19, só acenam com água corrente, sabonete, álcool gel e, recentemente, qualquer tipo de máscara.

Estar em casa pode ser refúgio ou risco. Mundo afora, avolumam-se relatos de aumento da violência doméstica como colateral nefasto das recomendações de isolamento. No Brasil pré-pandemia, sete em cada dez agressões ocorrem nas residências; na maioria dos casos, maridos, companheiros, namorados e ex são os autores. O secretário-geral da ONU, António Guterres, chegou a sugerir a adoção de sistemas de alerta de emergência em farmácias e supermercados, estabelecimentos que, abertos durante a quarentena, podem prestar auxílio às vítimas. Na Argentina, o governo firmou com a Confederação Farmacêutica o pacto da máscara vermelha. Se uma mulher disser por telefone ou pessoalmente o par de palavras, a linha de denúncia (lá 144, aqui 180) será acionada.

Em São Paulo, 16 mulheres foram assassinadas dentro de casa nas três primeiras semanas de isolamento social; um ano antes, no mesmo período, houve nove feminicídios, informou a “Folha de S.Paulo”. No Rio de Janeiro, a demanda por medidas protetivas no plantão judiciário aumentou com o recolhimento: 660 pedidos em oito dias. As denúncias à polícia praticamente não variaram: 8.310 em fevereiro, 8.049 em março, segundo a PM-RJ. É resultado que não tranquiliza as especialistas, porque há muita chance de subnotificação, tanto pela dificuldade de sair de casa, em razão da presença do agressor, quanto pelo redimensionamento dos serviços presenciais de registro de ocorrências. Nem todas as mulheres vítimas são capazes de formalizar denúncias por mecanismos on-line.

Casa é segurança ou solidão; local de trabalho e de exploração. Em nota técnica recém-concluída para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Ana Amélia Camarano, economista e demógrafa, apresentou um conjunto de informações e propostas de cuidados para idosos e cuidadores. O Brasil, calculou, tem 5,4 milhões de habitantes com 60 anos ou mais de idade que moram sozinhos; quase dois terços são mulheres. Um contingente de 4,8 milhões de pessoas cuida de idosos: 88% fazem isso de graça, sem remuneração; 66% são mulheres; 42% têm mais de 60 anos.

Há 200 mil empregados domésticos remunerados também por assistirem idosos; mais de meio milhão de brasileiros em idade avançada declararam necessidade de atenção que não recebem. É cenário agravado pela pandemia do coronavírus: “Tanto os idosos quantos os cuidadores precisam de ações de assistência social. De um lado, ajuda instrumental constante; de outro, renda, períodos de descanso e capacitação para evitar contaminação das pessoas”, sugere Ana Amélia.

Residência pode remeter a convivência harmoniosa ou assimetrias inconciliáveis de gênero. Crianças fora da escola, rotina profissional em home office andam expondo a sobrecarga de esposas e mães com afazeres domésticos e atribuições familiares. Na China, há notícia de que a convivência forçada levou a um aumento do número de divórcios pós-quarentena. No Brasil, estudos sobre uso do tempo mostram que mulheres dedicam o dobro das horas dos homens às tarefas do lar. É trabalho reprodutivo, não remunerado, ora atenuado pelo trabalho doméstico terceirizado, finalmente revelado e, espera-se, a caminho da repactuação de tarefas. Efeitos da quarentena.

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