Zulu Araújo – Ausência de cheque e tênis de marca

Foto: Margarida Neide/ A Tarde

O ano de 2012 não está nada alvissareiro para a cidadania no Brasil.

Foto: Margarida Neide/ A Tarde

De um lado, a junção da prepotência, violência policial e injustiça social, em defesa do capital imobiliário, expressos na desocupação dos moradores do bairro de Pinheirinho, em São José dos Campos, no Estado de São Paulo.

E, de outro, a permanente e irritante leniência do Estado brasileiro, na proteção aos seus cidadãos, expressos no desmoronamento dos três prédios no centro do Rio de Janeiro. Nestes episódios, chegou a ser caricatural a presença, as desculpas e as justificativas apresentadas pelas autoridades de plantão, paulistas e cariocas, para explicar o inexplicável.

Mas, apesar do impacto e da magnitude dos dois casos acima, vislumbramos, que com algumas medidas no campo administrativo e outras tantas no campo político poderemos superar tais situações e evitar a humilhação e o escárnio da pobreza e a perda de vidas de forma tão estúpida.

Por isto mesmo, chamou-me a atenção dois outros fatos, ocorridos neste mês e que também incidem diretamente na cidadania e que foram relegados há um segundo plano, por conta do poder midiático que as tragédias relatadas possuem, embora atinjam de forma muito mais poderosa e profunda, tanto o corpo como a alma da sociedade.

Refiro-me a morte dolosa do Secretário Nacional de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Duvanier Paiva, a quem tive o prazer de conhecer quando fui presidente da Fundação Cultural Palmares e a prisão de dois africanos (Tibulle Soussou, da República do Benin, e Sagesse Kalla, da República do Congo) na cidade de Porto Alegre.

Vejam senhoras e senhores: na capital da república de um país, cuja população de origem negra corresponde a mais da sua metade, um cidadão, da estrutura do poder central, morre, nas portas de um hospital, por falta de atendimento, pela prosaica razão de não possuir um cheque caução e ser negro.

E o que é mais grave, os porta vozes dos hospitais Santa Lúcia e Santa Luzia, ambos de Brasília, que recusaram atendimento ao paciente, de maneira cínica, sórdida e hipócrita tentaram durante todo o tempo responsabilizar a própria vítima ou de não ter estado nos hospitais, fato este desmentido pelas próprias câmeras de vigilância, ou de não ter se apresentado suficientemente enfermo para ser atendido.

O movimento negro brasileiro vem denunciando há anos o racismo latente, porém evidente que se pratica nos serviços de saúde em nosso país. Quando o atendimento ocorre nos serviços privados aí é que o bicho pega mesmo. Eu mesmo, já fui vitima inúmeras vezes, do olhar inquisidor do atendente a dizer, antes de me atender – “Será que ele pode pagar ?”.

E na dúvida, a orientação que eles recebem dos mercenários é: primeiro o cheque. É cruel, mas é assim mesmo – Primeiro o cheque. E como, o nosso companheiro Duvanier, não tinha o cheque, morreu de forma estúpida, após percorrer três hospitais. Lamentável, e além de lamentável, desumano.

O segundo fato é tragicômico. Dois jovens africanos, um do Benin e outro do Congo, dirigem-se, de ônibus, à Policia Federal, em Porto Alegre, para regularizarem suas situações no Brasil. Eram estudantes de português numa faculdade local.

De repente, não mais que de repente, os dois são retirados abruptamente de dentro do veículo, com armas apontadas para a cabeça, são presos, algemados, agredidos a socos e pontapés, um deles leva uma gravata e são levados para o Batalhão da Policia Militar.

Razão: Estavam usando tênis de marca e uma briosa policial militar, que também estava no ônibus, consciente da letalidade que aquelas duas figuras representavam para a sociedade, os confundiu com ladrões e chamou duas viaturas para prendê-los.

Só afirmei acima que o fato era tragicômico porque ocorreu durante o dia e na frente de dezenas de pessoas, fosse à noite, possivelmente, estes dois jovens seriam vitimas de uma tragédia e poderiam estar mortos, acusados de serem perigosos bandidos e terem resistido a prisão, pois é assim que se forjam os milhares de casos de resistência à prisão em nosso país.

E vejam, mais uma vez, senhoras e senhores, a prosaica resposta dada por um dos militares do Batalhão ao saber que os dois jovens eram estudantes africanos, e não ladrões, antes de os liberarem: “Isto aconteceu porque vocês são negros, este tipo de abordagem é comum aqui no Brasil”.

É de doer ou não ?

É por estas e outras que o Brasil continua a ser chamado de um país racista.

Axé !

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Fonte: Terra

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