O rosto sombrio da branquitude médica brasileira: do elitismo ao racismo xenófobo – Por Marcio André dos Santos

Costumo dizer aos meus alunos para desconfiarem de palavras como “evolução” e “progresso” pois estas sempre pressupõe avanços quando na verdade escondem armadilhas ideológicas complexas. A história do pensamento social e político nos países da América Latina, especialmente Argentina, Brasil e Colômbia, revela que, desde fins do século 19 até as primeiras décadas do século 20, elites médicas participaram ativamente de campanhas racistas, difamatórias e de cunho xenófobo contra imigrantes asiáticos, negros e indígenas, além de justificar medidas de higienização e eugenia contra estes grupos. Tais práticas estão intrinsecamente ligadas as “políticas raciais racistas” que pressupunham a imigração de europeus com patrocínio estatal a fim de embranquecer seu estoque populacional, compostos de “negros, indígenas e mestiços”.

Não foi muito diferente na Europa, principalmente na Alemanha e Áustria dos anos de 1930 e 1940. A ideologia nazista contou com um expressivo corpo de profissionais da área médica, como cirurgiões, biólogos, sanitaristas, patologistas e psicólogos. Estas elites médicas foram fundamentais para justificar e disseminar no imaginário da classe trabalhadora alemã e austríaca do período que judeus, ciganos, loucos, homossexuais, portadores de necessidades especiais, etc, constituíam “raças” ou “seres inferiores e degenerados” e que por isso precisavam ser eliminados fisicamente, preferencialmente por meio de “métodos científicos”, como as câmaras de gás. Era comum a associação animalesca dos judeus com infestação de ratos e outras pragas. Mais recentemente, radicais hutus em Ruanda e Burundi associaram tutsis com baratas (cockroach), dando total aval a população enfurecida contra esta minoria étnica africana.

Apesar do transcorrer do tempo, as elites econômicas e sociais de países como o Brasil sofreram pouca transformação no que se refere a este imaginário. As melhores escolas particulares e públicas continuam a mandar para os cursos de medicina de universidades públicas e privadas de excelência os filhos de famílias ricas e de classe média, praticamente toda branca. Dai a associação feita tão facilmente entre um branco(a) de jaleco branco e um médico(a). Médicos pertencentes a outros grupos raciais, especialmente negros são encarados com estranheza e verdadeiro desdém, já que destoam da representação hegemônica que temos dos médicos.

Além do recorte de classe e raça estruturante na formação dos médicos de todas as especialidades, há que se levar em consideração que o currículo desses profissionais raramente abarcam assuntos como direitos humanos, desigualdades sociais, racismo, etc. O resultado é que muitos médicos simplesmente aprendem a ter repúdio e nojo do povo. E “povo” no Brasil é constituído basicamente por pessoas pretas, pardas, brancas, indígenas e pertencentes as classes C,D,E,F,G,H!
Isso explica em parte a reação racista, xenófoba e esquizofrênica de médicos e estudantes de medicina em Fortaleza e outras cidades do nordeste com a chegada de médicos cubanos, dentre estes muitos negros. Como todos sabem os médicos brasileiros não querem atuar no interior, longe dos grandes centros urbanos. É verdade que os hospitais e postos de saúde em muitas pequenas cidades do interior do país são um verdadeiro fiasco. Falta de tudo. No entanto, mesmo se estivessem suficientemente equipados – e existem casos de estruturas hospitalares em boas condições – estes médicos dificilmente não iriam. E não iriam nem mesmo para ganhar mais que 15 mil reais ao mês!

A recusa com a vinda de médicos cubanos associando-os a “escravos” e “empregadas domésticas” é revelador do imaginário racista e classista da “branquitude médica” brasileira e da imprensa burguesa prima-irmã da primeira. Como já mostrado em inúmeras reportagens, médicos assinam seus pontos em hospitais públicos e logo depois vão embora, em um completo descompromisso/descaso com a saúde da população. Doentes agonizantes, humilhados, esquecidos, espalhados nos corredores e salas de hospitais e postos públicos de saúde.

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Ninguém pode garantir que o Programa “Mais Médicos” do governo federal dará certo ou não. Existem muitas controvérsias sobre a eficácia do programa e certamente não basta somente contratar mais médicos para que um problema estrutural e conjuntural se resolva. É preciso que haja uma total reformulação nas políticas públicas de saúde em toda a sua extensão, o que significa o triplo de investimentos na área. O que já se pode garantir é que este programa está mexendo com as posições de privilégio simbólico, social, corporativo e racial de um segmento que se beneficiou do capital econômico tomado à força dos grupos que agora recusam atender e tratar. Quem sabe daqui a uns 50 anos, com programas consistentes e sucessivos de políticas de ação afirmativa para negros, indígenas e pobres, tenhamos um outro cenário? Um cenário em que médicos e médicas negros serão vistos com total naturalidade e respeito…

Marcio André dos Santos
Professor de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí

 

Vergonha à brasileira

“Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica”, afirmou a jornalista

Debate sobre os médicos me dá vergonha – Por: Gilberto Dimenstein

 

Fonte: Afrolatinidade

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