A cegueira da nossa seletiva justiça: a invisibilização de marinas e a impunidade de hevertons – Por: Higor Faria

 

Em abril de 2012, o psicanalista Heverton Octacílio de Campos Menezes se dirigiu a atendente de cinema Marina Serafim dos Reis da seguinte forma “Sua negra, volta para a África. Você está no lugar errado. Seu lugar não é aqui, lidando com gente, mas é com animais.”. Após o discurso racista que proferiu e a revolta que gerou em algumas pessoas que presenciaram ocorrido, Heverton fugiu correndo. Isso mesmo, c-o-r-r-e-n-d-o. Um covarde homem branco que usou suas posições sociais de poder para inferiorizar uma mulher negra.

Além de Marina, duas outras mulheres afirmaram serem vítimas de agressões racistas de Heverton. Veja só: um médico, psicanalista, na casa dos 60 anos é acusado — mais de uma vez — de praticar crimes que envolvem intolerância racial. Pois bem, no dia 14 de setembro de 2013, a sentença proferida pelo juíz Luis Eduardo Yatsuda Arima descartou que Heverton tenha agredido Mariana com comentários racistas.

Calma-lá, Excelentíssimo! Um homem branco diz que uma mulher negra deve voltar para a África para lidar com animais e o senhor não enxerga o discurso de intolerância? Nas palavras do magistrado, “a ofensa não se deu em um contexto de discriminação racial, restando provado que o desentendimento entre os dois ocorreu apenas em razão da discordância sobre o momento em que deveria ter sido feito o atendimento”. Juro que gostaria de saber o que o sr juíz Luis Eduardo Yatsuda Arima entende por ofensa racista ou qual o seu parâmetro de comparação. Para mim está bem claro: o psicanalista, ao ressaltar a etnia de Marina, evocou o não-lugar do indivíduo negro na sociedade brasileira, além de dizer que ela não deveria lidar com pessoas, e sim com animais.

Essa (infeliz) decisão do magistrado não é diferente de outras tantas dadas aos crimes raciais, porque o direito penal brasileiro e a justiça são seletivos.

Primeiramente, devemos retomar que o racismo é estrutural e que atinge também a academia. Quando não temos professores negros, quando não temos pensadores negros sendo consultados e quando não temos alunos negros, não há representatividade nem a noção do outro não presente, de suas limitações e problemas. Uma pesquisa mostra que o número de negros nos cursos de ponta é de 1% na USP, por exemplo. Observe: negros não alcançam cadeiras de graduandos, logo não ocupam as de mestres, muito menos chegam as de magistrados, isto é, não influenciam na construção do poder judiciário. Agora me diga, como o sistema vai deixar pender para o lado dominante? Há grandes possibilidades do citado juíz ter tido essa formação excludente, do mesmo jeito que a maioria dos magistrados do país formadores poder judiciário. Mas isso não é desculpa para tal decisão — muito pelo contrário, é preciso ter a noção da configuração racista sobre a qual nosso país foi construído e os impactos disso na sociedade.

Outro ponto ligado ao racismo estrutural é o direito penal que essencialmente foi escrito por homens brancos que ocupam espaços de poder para outros homens brancos que também ocupam espaços de poder. Assim, há uma invisibilização da vítima quando o assunto passa por questões que envolvem mulheridade, poder aquisitivo, sexualidade e, logicamente, negritude. E também há uma resistência quando os grupos oprimidos tentam emplacar uma norma que diga respeito a eles, são exemplos a descriminalização do aborto, a criminalização da homofobia e a desmilitarização da polícia, que extermina a juventude negra.

No caso do psicanalista, há um jeitinho na lei que favorece o homem branco que ocupa espaços de poder e invisibiliza a minoria, que, no caso é mulher e negra. Quando se fala em crimes de cunho racial, a justiça brasileira tipifica duas formas: racismo e injúria racial.

Segundo a constituição federal, artº 5º, inciso XLII, “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Inafiançável e imprescritível: o racista que praticou o crime não seria possível pagar fiança para sair da cadeia e seu crime poderia ser denunciado a qualquer tempo — todo esse rigor é lindo, né? Nem tanto. Para a lei 7.716/89, a grosso modo, o crime de racismo se efetiva quando um indivíduo é impedido de permanecer, de acessar ou não certos lugares por conta de sua etnia. Veja bem: a norma fala em negar a alguém cargo em empresa só por conta de sua cor, por exemplo.

Não vou entrar aqui no campo estrutural e simbólico que faz com que um país comandado por “hevertons” cometa atos racistas diariamente contra “marinas”, impedindo o acesso de pessoas negras às universidades, aos postos de empregos, aos hospitais, aos cargos de governo nas três esferas, aos meios de transporte, aos veículos de comunicação etc. Porém, vale refletir: como investigar o crime de racismo no país onde a intolerância é tão enraizada? Bom,duas coisas são certas: o suspeito vai dizer que “foi só um mal entendido”. Se não colar, o direito penal (seletivo) vai dizer que é injúria racial.

O crime de injúria racial está ligado à verbalização de termos que inferiorizam a vítima de acordo com sua etnia. No direito, por mais que Heverton tenha dito que o lugar de Marina não seria ali lidando com gente, ela seria uma possível vítima de injúria racial.

O problema é que a injúria racial desfavorece o oprimido e favorece o opressor. Embora as penas por racismo e a por injúria sejam de um a três anos de prisão, o processo é diferente. No primeiro caso, a ação é pública, movida pelo Ministério Público, e imprescritível — bom! No caso de injúria, a ação passa a ser movida pela parte ofendida e seu prazo de prescrição é de seis meses, s-e-i-s meses — não tão bom, pois são obstáculos para a vítima.

Uma pesquisa feita pelo Núcleo de Direito da Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Direito GV no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) concluiu que crimes de ofensa racial têm poucas resoluções. A partir de uma análise de 26 processos, filtrados de um total de 226, observou-se que a baixa resolução é fruto da tipificação dos crimes raciais como injúria, pois há uma transferência da responsabilidade de mover a ação para a parte ofendida e há também a transformação da ação em prescritível. Das 26 ações analisadas, 10 prescreveram. E das 16 que sobraram, o TJSP decidiu que 7 delas seriam extintas e que não ganhariam espaço na primeira instância. Difícil, né? O sistema está estruturado de uma forma que desestimula as vítimas a denunciar.

A lei, criada pelo homem branco, colocou obstáculos para que o agressor de Marina fosse punido. Mesmo sem a presença do Ministério Público e com o corrido tempo de 6 meses para a prescrição, ela conseguiu mover a ação. Pela repercussão do caso e o número de testemunhas, não teve seu processo extinto logo de cara. Porém, esbarrou em uma justiça branca que não entende as agressões de uma sociedade racista.

Torçamos para que a Marina e outras marinas tenham força, tempo e dinheiro para recorrer contra seus agressores; para que esse e outros hevertons paguem pelos crimes cometidos; para que o direito penal seja menos seletivo; e que a justiça seja cega para todo mundo — ou que, enxergando, não invisibilize ninguém.

Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria

Fonte: Medium

-+=
Sair da versão mobile