“A filosofia é inimiga do autoritarismo”, diz senegalês Souleymane Bachir Diagne

Filósofo participa de evento que promove diálogo entre África e Ocidente na Aliança Francesa, nesta sexta-feira (16)

Por Marília Moreira, do Correio 24 Horas 

, photo Mathieu Zazzo

Durante muito tempo, o Ocidente foi visto como universal, e tudo que não se encaixava exatamente em seus códigos, modos de ser e pensar, era considerado específico. Defensor da ideia de que a humanidade precisa ideia de um universal, mas que seja criado em comum, o filosófo senegalês Souleymane Bachir Diagne chega a Salvador para discutir esse e outros assuntos no evento “Filosofia: Diálogos contemporâneos entre África e Ocidente”, que acontece nesta sexta-feira (16), às 15h, no Teatro Molière, na Aliança Francesa. Os ingressos custam R$ 20 (inteira), e estão disponíveis no site da Sympla.

Com o propósito de conectar, através do tempo e espaço, diferentes trajetórias e realidades, a iniciativa é um esforço de pensar a África e seu encontro com o mundo ocidental em diálogo com a filosofia, refletindo sobre questões como os legados do colonialismo e os desafios contemporâneos do continente africano e de países como o Brasil para o desenvolvimento; democracia e governança; e as possibilidades de resistência em contextos marcados pela opressão. “A filosofia é inimiga do autoritarismo”, defende Bachir Diagne.

Para o professor da Universidade de Columbia em Nova York, não existem questões de específico interesse africano que não sejam, também, grandes questões do mundo – e vice-versa. “Nós refletimos a partir da África sobre a totalidade do mundo – e é a razão pela qual esse apagamento das fronteiras seja feito de um jeito bastante fácil”, argumenta sobre a possibilidade de conectar diversos continentes.

Com uma extensa carreira acadêmica que abrange literatura africana, história da filosofia e matemática, Bachir Diagne abordará ainda a influência de pensadores europeus no resto do mundo e a descolonização de conceitos filosóficos, temas de seu livro “Bergson pós-colonial: o elã vital no pensamento de Léopold Sédar Senghor e Muhammad Iqbal”, recém-lançado no Brasil (Cultura e Barbárie, tradução de Cleber Lambert).

O pensador divide o palco com o professor e pesquisador Márcio Pereira, doutor em Direito e em Filosofia, além de parceiro da Aliança Francesa no projeto Filosofia com Carne – um encontro filosófico organizado pela instituição para discutir assuntos relacionados ao cotidiano e à existência humana, tendo como elo principal a literatura. A jornalista baiana Danila de Jesus conduzirá a conversa. A atividade encerra a programação do Estágio Intensivo Master Europhilosophie/UNILAB, que acontece no Campus dos Malês, em São Francisco do Conde.

Para o diretor da Aliança Francesa, Mamadou Gaye, o momento é uma oportunidade única de renovar o diálogo da Filosofia com a sociedade e aproximar o público da prática filosófica de forma mais livre. “Nossa ambição é criar as condições para uma reflexão coletiva que produza ferramentas úteis para cada participante, a partir das contribuições de nossos palestrantes de alto nível e em um ambiente acolhedor. Estou ansioso com esse encontro que certamente transformará a todos”, comenta.

Olhando o currículo do senhor, chama atenção a atuação em diversas disciplinas: lógica e matemática, filosofia, religião, línguas, identidade. Esses foram interesses que foram se desenvolvendo em diferentes fases de sua trajetória ou ainda hoje o senhor continua a olhar para todos esses lugares?
Eu comecei o meu percurso filosófico trabalhando, de início, sobre assuntos técnicos da lógica matemática. Eu me especializei em filosofia da ciência, particularmente em filosofia da matemática e de lógica – e minhas duas primeiras obras são dedicadas à álgebra da lógica. E, em seguida, após a minha tese, voltei ao Senegal, onde ensinei durante muitos anos. É evidente que, uma vez estando em terras senegalesas, eu participei de todos os debates que estavam em curso sobre filosofia africana, questões de identidade, línguas africanas, arte africana etc, e eu então me desenvolvi dentro desse campo ao longo do tempo e os adicionei aos meus trabalhos anteriores. E, depois, a terceira área sobre a qual eu escrevi e me envolvi, tanto nos meus ensinamentos quanto nas minhas pesquisas, foi a história da filosofia no mundo do Islã. Então são esses os três grandes domínios sobre os quais escrevi e escrevo ainda, que ensinei e continuo a ensinar. Eu publico, talvez, menos sobre o lado técnico da filosofia e da ciência, mas eu tenho interesse em fazê-lo em breve, inclusive, e eu escrevo sobre a história da filosofia islâmica – é igualmente uma grande questão africana, então eu estou presente. No percurso da carreira acadêmica, nós desenvolvemos os centros de interesse porque as questões filosóficas são problemas que nos chegam e demandam reflexões. E é por isso que eu não me fecho simplesmente em uma especialidade, da filosofia ou matemática: eu sou também engajado nas discussões correntes dentro do meu continente, com meus colegas, meus amigos – o que explica um pouco esses três grandes campos sobre os quais eu trabalho e penso a respeito.

Talvez minha curiosidade seja enviesada por um entendimento muito “disciplinar” (no sentido de separação de assuntos, temas e interesses) da ciência. Já que o encontro vai debater as conexões entre África e Ocidente, como o senhor entende as aproximações e distanciamentos do pensamento de África, da Europa e da América do Sul?
Na verdade, para responder de forma breve, uma das coisas sobre as quais eu insisti muito em meus escritos é essa ideia, mais uma vez, de que as regiões e as grandes culturas do mundo não são ilhas separadas. Elas estão em comunicação. O mundo do ocidente não é, hoje, anterior a todas as outras partes do mundo. Da mesma forma, o oriente não é uma entidade separada do ocidente. O oriente está no coração do ocidente. Por consequência, essa interpenetração das culturas é uma das coisas na qual devemos insistir. Particularmente hoje, no que diz respeito a África, tenho um grupo com meus amigos, um grupo de amigos intelectuais conhecidos como Achille Mbembe, Felwine Sarr etc, onde temos uma espécie de Think Tank que chamamos de “Les Ateliers de la Pensée” (Ateliês do Pensamento). E um dos princípios de nossas reflexões é que as questões africanas são questões planetárias e as questões planetárias são questões africanas. Não existem, de forma determinada, questões de específico interesse africano que não sejam, também, grandes questões do mundo – e vice-versa. Então essas questões tem espaço, claro, de forma natural porque nós refletimos de maneira global. Nós refletimos a partir da África sobre a totalidade do mundo – e é a razão pela qual esse apagamento das fronteiras seja feito de um jeito bastante fácil.

Estamos em um momento no Brasil – creio que no mundo também – em que estamos vendo esse conhecimento ser tensionado a todo tempo. O que a filosofia tem de revolucionário?
Essa é uma boa pergunta a fazer para a filosofia. Ela sempre foi revolucionária, mesmo quando ela estava calma, tranquila e sem urrar. Porque, na verdade, a razão desse estado das coisas é simplesmente porque a filosofia é um processo que toma as coisas nas raízes, que traz a partir das raízes. A palavra para isso é processo radical. Quer dizer, no sentido de pegar as coisas nas raízes. Ela não se contenta em ter ideias simplistas, que infelizmente estão em curso hoje se olharmos a situação política atual. Nós vemos que muitos regimes autoritários desenvolvem ideias extremamente simplistas. Falamos de slogans com frases bem curtas, de afirmações etc, e a filosofia não funciona dessa forma. A filosofia nos lembra da complexidade do mundo e convida a todos a fazerem perguntas radicais, se perguntar, sobre a solidez dos argumentos que sustentam os fatos. Em outras palavras, a exigência da verdade, a exigência de examinar, que são duas coisas da essência da filosofia, não combinam com o slogan político que finge não precisar da verdade e dos fatos – e nós vivemos um momento de muitas ficções e fake news. E a filosofia é inimiga de um processo autoritário como esse, mesmo que ela não grite, mesmo se ela não tome posições aparentemente revolucionárias porque chama a uma revolta etc. O simples processo filosófico é revolucionário.

Um dos objetivos do encontro é pensar a África e sua relação com o mundo ocidental em diálogo com a filosofia, refletindo sobre colonialismo, resistência. Pode adiantar alguma das reflexões que o senhor levará para a mesa?
Somente uma ideia que trago comigo no peito, que é a ideia de um universal que, hoje, seja criado em comum. É algo bem simples: durante muito tempo o ocidente se definiu como o local do universal – e que se identifica como universal. No fundo, o ocidente ergueu sua própria particularidade dentro desse universal ao pedir ao resto do mundo para se basear nessas regras criadas por ele próprio. Um mundo decolonizado é um mundo essencialmente plural, então com idiomas diferentes, culturas diferentes – e elas são todas equivalentes. A questão que nos fazemos agora é se é necessário esse universal, se nós iremos nos contentar com o relativismo, cada um faz a sua maneira e pronto. Eu sou daqueles que pensa que o universal é necessário. Primeiramente, o universal é a expressão do que temos em comum e que compartilhamos dentro dessa condição humana. E mais, de maneira objetiva, nós compartilhamos a mesma finalidade. A questão do meio ambiente nos obriga a pensar de forma filosófica o que significa morarmos juntos na Terra. Essa é uma questão que põe diante de nós de maneira universal. A COP21 foi um grande momento de universalidade quando todas as nações do mundo se reuniram para se entender e tomar decisões para que, a curto e médio prazo, esse planeta seja nosso lar, que nós possamos compartilhar. Então, precisamos do universal, mas essas questões não podem ser ditadas a qualquer região do mundo que seja. É necessário que seja um universal de encontro, de diálogo, de tradução, e é precisamente sobre isso que irei insistir na conferência em Salvador.

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