A pesada crise

(Foto: Reprodução/ Twitter)

meu relógio biológico tá ok. tô no trabalho e o despertador interno avisa que é hora de ir ao banheiro. obedeço, levo comigo um jornal, sempre o faço. vai que falta papel.

Por Lele Teles via Guest Post para o Portal Geledés

Reprodução/ Twitter

os jornais ainda servem para isso.

sento, abro o pasquim. na capa, a foto de uma voluptuosa prostituta, aqui na orla. a manchete afirma que a crise chegou ao trottoir. clientes pechincham e querem pagar menos pelo serviço.

conversa mole.

a matéria não tinha pé nem cabeça, era só para manter vivo o mantra da crise.

hipnotizada, a sociedade repete o mantra, repete o mantra, repete o mantra… e o internaliza.

no banheiro, o vizinho do box ao lado fazia uma força brutal, mas não cagava. resolvi fazer contato para ver se distraía o cabra e ele se desentupia: tá difícil aí hein, amigo?

é a crise, ele respondeu.

olhei mais uma vez para a capa do jornal e pensei: com mil diabos, coitada dessa prostituta, agora todos os clientes passarão pela calçada e pedirão um desconto.

é a crise, dirão.

para o midiota, a mídia é como uma religião. ele crê no que lê. e nisso, torna-se uma marionete.

um dia, o genial orson welles lia um roteiro amalucado numa estação de rádio: os marcianos estão chegando, elas estão a invadir nosso espaço aéreo, fujam para as montanhas.

os midiotas, quais baratas tontas, puseram-se em disparada (run to the hills), corriam para todos os lados, alguns davam entrada em hospitais com sinais de radiação pelo corpo, outros olhavam para o céu e viam as gigantescas naves fazendo sombra na praça, alguns relatavam terem sofrido uma súbita abdução.

histeria coletiva, choro e ranger de dentes. nos banheiros ninguém mais conseguia cagar. malditos marcianos, diziam.

no final, soube-se que se tratava de uma pegadinha. e aí foi como se todos os estadunidenses tivessem tomado laxante.

a brincadeira de orson welles encaixa-se como uma luva nas teorias de Lippmann e Mccombs sobre o poder que a mídia tem em criar agendas, modificar a realidade e deformar a opinião do público, criando uma opinião pública a partir da opinião publicada.

o midiota acredita, acriticamente, no que a mídia mitifica.

dei descarga e passei o jornal por baixo da porta, para que o colega de trabalho se martirizasse ainda mais e “morresse” entupido.

enquanto lavava as mãos lembrei-me do colar de tomates no pescoço de ana maria braga. a globo já infernizava a mente das pessoas com a ideia de crise e inflação alta há algum tempo.

nesse período, chegava-se no churrasco de domingo e ninguém tinha levado vinagrete. é a crise, diziam.

tá custando dez paus um tomate.

quando caiu o preço do tomate, foram atrás de algum outro item que sofria com a sazonalidade e apontavam a alta de preços.

o negócio é manter o mantra.

agora, qualquer sinal de melhora na economia, os jornais mancheteiam: apesar da crise… e espalham a teoria do copo meio vazio.

as pessoas acreditam, é uma questão de fé.

gerald thomas, o apalpador de piriquitas, mora nos esteites, precisamente no east river, de frente para as torres gêmeas.

ele estava na sala de casa quando viu fogo em uma das torres.

não pode ser verdade, disse a si mesmo.

foi à janela farejar o que ocorria, quando viu uma nave atingir a segunda torre. não é possível, não pode ser verdade, não é real.

eu o ouvi dizer isso no programa do jô.

ele olhou mais uma vez para a janela e as duas torres ardiam em chamas. mas ele se recusava a acreditar no que seus dois olhos viam.

então, ele teve uma ideia genial. ligou a tv e a cnn mostrava a mesma imagem que ele via, foi então que ele deixou-se cair no sofá.

agora veja que curioso, o dramaturgo disse que somente depois de ver a notícia na tv é que ele teve certeza de que o que via era real.

diga lá.

merece ou não merece umas chineladas um cabra desses?

o diabo é que a geraldtomização da sociedade tem feito as pessoas desacreditarem no mundo a sua volta, o midiota faz do simulacro midiático uma realidade.

e o faz acriticamente. é como o fiel. a bíblia diz que uma baleia engoliu jonas, depois o regurgitou na praia.

o fiel acredita.

e se a bíblia dissesse que jonas é que tinha engolido uma baleia e depois vomitado-a, o crente creria da mesma maneira.

é a crise, irmãos. crise de identidade.

palavra da salvação.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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