A radicalidade do conceito de direitos reprodutivos

Foto: João Godinho

Escrevi, na semana passada, sobre a propriedade de a presidente Dilma Rousseff ter declarado que “meio ambiente não é adereço”. Porém, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, um conceito caro à luta internacional pelos direitos das mulheres à saúde foi golpeado, num consenso capitaneado pelo Brasil, atendendo a um anseio fundamentalista, desde a Conferência de População do Cairo (1994), daquele país não habitado por mulheres nem por crianças e que se comporta como religião ou como Estado, segundo as conveniências da hora: o Vaticano.

Por: Fátima Oliveira

Falo dos direitos reprodutivos, que na plataforma do Cairo estão expressos como se segue: “Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos, em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência” (§ 7.3).

Para Sônia Corrêa, Paulo de Martino Jannuzzi e José Eustáquio Diniz Alves, em “Direitos e saúde sexual e reprodutiva: Marco Teórico-Conceitual e Sistema de Indicadores”, “o conceito de direitos reprodutivos foi desenvolvido em resposta tanto às questões demográficas quanto às questões de saúde”. Acrescento que o referido conceito encerra uma reivindicação de ordem política sobre o Estado por qualidade na atenção à saúde da mulher e referenda a consigna “Nossos corpos nos pertencem”, razão da ira fundamentalista que o Vaticano expressa na ONU.

Tenho dito, por paradoxal que possa parecer, que “lutar pela saúde da mulher é a arte de fazer inimigos. Por que governantes e executores de políticas de saúde são intolerantes quando nos referimos à saúde da mulher? Ouvi de um secretário de saúde: ‘As feministas são muito abusadas, exigentes demais e nunca nada está bom para elas’. Enfim, somos umas chatas. Vai ver que somos! Afinal, o que é saúde da mulher em ‘feministês’, que soa como uma linguagem indecifrável para a maioria de governos e gestores de saúde, ou mesmo um palavrão, ou um xingamento à mãe deles?

A ONU concorda
com injustiças,
mandando
os direitos reprodutivos
para as profundas
do inferno, com o
aceite do Brasil

Saúde da mulher é um campo de assistência, estudos e pesquisas consolidado, cuja área de maior destaque é a dos direitos reprodutivos – que concentra mais conflitos referentes à opressão de gênero”. Para Sônia Corrêa e Betânia Ávila (2003), a saúde da mulher surgiu “como uma estratégia semântica para traduzir, em termos de debate público e propostas políticas, o lema feminista da década de 70: ‘Nossos corpos nos pertencem'”.
O controle social do processo de procriação é, por extensão, o controle da sexualidade e, embora não sendo a única causa, está também na base original da dominação de gênero; então, ao explicitar com fidelidade a situação de cidadania de segunda categoria na qual as mulheres vivem, saúde da mulher soa como uma subversão do status quo. Só pode ser. Não deixa de ser.

Reafirmo que nada demoverá o feminismo mundial de expressar desacordo quando o sistema Nações Unidas concorda com injustiças, mandando os direitos reprodutivos para as profundas do inferno, com o aceite do Brasil, que tratou os direitos reprodutivos como adereço inútil.

 

 

Fonte: O Tempo

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