Há poucos dias estava em uma sala onde haviam várias crianças, cada uma delas se divertia a seu modo.
Enquanto observava vi duas meninas sentadas em volta de uma mesa com bonecas no colo, certamente representavam suas filhas, uma outra menina longe da mesa. De repente escuto: empregada… você tá demorando pra trazer o café!
por Bernadete Aparecida Martins dos Santos via Guest Post para o Portal Geledés
Acredito que seja desnecessário dizer que a criança que representava a empregada era negra.
A menina sai correndo em direção à mesa e pede desculpas enquanto servia as outras.
Eu enquanto mulher, adulta, munida de alguns conhecimentos sobre o racismo, não consegui me controlar diante daquela situação e intervi na brincadeira.
Questionei do que estavam brincando e a menina que representava a empregada respondeu, estamos brincando de casinha e eu sou a empregada delas.
Perguntei novamente, por que ela era a empregada e ela respondeu que não sabia, as outras meninas riram meio sem graça, mas também não responderam…
Sugeri então que não tivesse a empregada, que todas poderiam ser amigas e prepararem o café juntas e cuidassem das coisas como boas amigas.
Elas até aceitaram minha sugestão e seguiram a brincadeira.
No mesmo dia ouvi de longe a criança que representava a empregada dizendo as colegas: – Não, não vou ser empregada, nem a babá, se a gente for brincar vamos ser amigas, cada uma cuida da sua filhinha e a gente toma café juntas.
Situações como essa trazem uma reflexão triste a ser feita; são crianças reproduzindo um estereótipo produzido culturalmente que interfere na construção da subjetividade do outro.
Nosso processo de subjetivação passa pelo crivo do outro também!
Ninguém perguntou o que aquela menina queria ser na brincadeira ou na vida, simplesmente lhe deram o papel de empregada e pronto.
Fico me perguntando em que momento aquela menina poderá sonhar os seus sonhos e não representar os sonhos que essa cultura tem para ela? Quando é que o outro poderá contribuir para que ela tenha a possibilidade de sonhar como um ser igual?
Estou falando de crianças que sonham em serem patroas, e de crianças a quem não é permitido sonhar os mesmos sonhos e nem ao menos reproduzir isso nem sagrado momento da fantasia, onde teoricamente se pode tudo.
Quando é que o simbólico dessa menina conseguirá se apropriar de algo que ela não pode se quer simbolizar?
Sim, este é apenas mais um pequeno recorte que tece essa colcha de retalhos imensa de proporcionais à dimensão do horizonte, sobre o racismo, mais uma evidência que precisamos cada vez mais nos fortalecer e nos empoderar.
Somos negros e podemos sonhar sim!
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