Antonia Pellegrino: “Presidente fundiu ministérios em uma só pasta: a das declarações bizarras”

A futura ministra Damares Alves (Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo)

Na estreia de sua coluna, Antonia fala sobre as sérias consequências da nomeação e das declarações de Damares Alves para a causa das mulheres e para o país

Por Antonia Pellegrino, da Revista Marie Claire 

A futura ministra Damares Alves (Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo)

O presidente empossado Jair Messias fundiu o ministério dos direitos humanos, mulheres e cidadania em uma só pasta: a das declarações bizarras.

A fantástica fábrica de memes nacional já sacou tudo: a cruza de Janaína Pascoal com Regina Duarte dá na ministra Damares. A semelhança não é apenas fisionômica. Damares, que tem vídeos exaltando sua visão de Jesus subindo num pé de goiaba, é a atriz perfeita pra fazer a Janaína do novo governo.

Durante o impeachment, de base legal mas imoral, Janaína interpretava a cortina de fumaça viva. Sem limites pro patético, enquanto a gente discutia sua performance gospel, nos bastidores do congresso galopava “o grande acordo nacional, com supremo com tudo”.

As últimas eleições centraram o debate de país na mamadeira de piroca, kit gay, Venezuela, comunismo. Fantasmas, fake news, fanatismo. Se o PT historicamente ganhou eleições na agenda econômica, era hora de desviar o foco. E jogar o debate pro campo dos costumes, essa suposta Sodoma e Gomorra que ninguém nunca viu, mas que apavora o país.

Entre os 57 milhões de eleitores do Bolsonaro, há gente que quer mudança, gente que não vota no PT de jeito nenhum, gente fanática. O que os une? Já que Bolsonaro não apresentou projeto de país, além de promessas vagas de combate à corrupção, cada eleitor seu tem seu próprio desejo de mudança.

Diante de tanta diversidade, é preciso criar unidade. A massa fanática deve ficar unida. O ministro da educação, o chanceler e a ministra das declarações bizarras estão aí pra isso.

“Gravidez é um problema que só dura nove meses, enquanto o aborto caminha a vida inteira com a mulher”; “não é a política que vai mudar esta nação, é a igreja”; “a mulher nasceu para ser mãe”; “meu sonho é ficar na rede enquanto meu marido rala pra me dar jóias”. Em menos de dez dias, a ex-assessora de Magno Malta não lhe roubou apenas a vaga, mas roubou a cena.

Quando todos os jornais davam manchetes sobre as suspeitas movimentações financeiras do motorista de Flavio Bolsonaro, reveladas pela investigação do COAF, Damares entrou em campo pra mudar o assunto, falou de suas prioridades a partir de primeiro de janeiro: livrar o Brasil do aborto implementando o Estatuto do Nascituro e a bolsa estupro.

Pra quem não sabe, o Estatuto do Nascituro faz a ineficaz legislação sobre aborto retroceder a 1940, quando nenhum tipo de aborto era permitido no Brasil. Ou seja, faz as mulheres voltarem a viver a tortura de carregar durante nove meses filhos que vão nascer mortos; obriga mulheres a permanecerem grávidas mesmo com suas vidas em risco; determina que filhos fruto de estupro venham ao mundo. Mas olha, não é tão mal: o estuprador que você não quer ver nunca mais na sua vida fica obrigado a te pagar uma bolsa pra você cuidar do filho fruto da violência.

Diante da grita, ela adoçou o discurso: não é Estatuto do Nascituro, é da grávida, da mãezinha sofredora. No mesmo dia em que Damares disse isso, uma mulher grávida deu à luz, sem anestesia, largada no chão de um hospital do Rio de Janeiro. Sim, ministra, as grávidas precisam de cuidado: de planejamento familiar, de prevenção à gravidez, de acompanhamento médico durante a gestação, de leitos em hospitais, e não de presídios caso o Estado falte em todas as etapas anteriores – como acontece hoje.

O aborto clandestino de 500 mil mulheres no Brasil, por ano, configura uma situação de anomia social. O Estado finge que não existe, as mulheres se viram pra fazer suas escolhas de cuidado, médicos correm riscos nos procedimentos ilegais, e muitas vezes as mulheres acabam mutiladas ou mortas em clínicas clandestinas. Esta situação de anarquia precisa ser tratada com responsabilidade, com política pública, e não com acirramento de proibições, e mais mortes e mutilações.

Falar sobre o aborto, ao invés de proibi-lo, é a única forma de dissuadir mulheres de abortar. Descriminalizar o procedimento é a única maneira de lidar com ele às claras. Por que deixar as mulheres ainda mais sozinhas e aterrorizadas diante de uma escolha tão difícil? Por que não propor à sociedade um aumento de responsabilidade geral sobre o tema? Em todos os países onde o aborto foi descriminalizado, os procedimentos diminuíram, ao invés de aumentar.

Enquanto a ministra das declaração bizarras joga pra sua plateia e faz seu showzinho pra desviar as atenções das suspeitas de corrupção sobre o novo governo, algumas mulheres já morreram. Enquanto você lia este texto, algum mulher foi mutilada.

É hora de nos organizarmos pra enfrentar os retrocessos que esta mulher pretende pautar contra a sociedade. Mas também é hora de entender onde ela é uma peça estratégica no fire housing que permite o Paulo Guedes tocar reto as privatizações, incluindo aí a da sua previdência.

Damares está aí pra fazer seguir o baile da guerra cultural, mas nós não estaremos nele. Trazer a pauta das mulheres pra agenda de costumes é cair numa armadilha. Foi-se o tempo em que se podia falar em democracia sem mulheres. E este grupo que está no poder sabe muito bem disso. Cabe à nós não permitir o retrocessos, e lembrar: o nosso tempo chegou.

-+=
Sair da versão mobile