As saudades do paladar são memórias culturais eternizadas

(Foto: João Godinho)

Fonte: O Tempo –

A comida é uma das expressões culturais mais expressivas de um povo, só comparável à língua, pois eterniza costumes, afetos e história. Dos lugares que conheço, a comida local é a imagem mais forte. Não faço cara de nojo diante de alimentos feitos de modo diferente ao que estou acostumada. E mais, quando sinto saudade, sinto fome de comer algumas coisas à moda da minha mãe ou da minha avó, cozinheiras eméritas…

Por Fátima Oliveira

Metida a gourmet, considero o preconceito contra o paladar odiento. Por anos travei uma guerrilha surda para manter viva em minha casa a cozinha maranhense, a sertaneja e a do litoral. Por circunstâncias da vida, aprendi muito da arte culinária e nichos de ecogastronomia de outros Estados do país. Cada lugar tem seu estilo culinário – o modo de fazer alimentos comuns, como o arroz, o feijão, as carnes e os peixes. Resisto ao ar xenófobo do desdém do “estilo de comer” de outros lugares – refiro-me mais às comidas do cotidiano do que ao rotulado de comidas típicas.

Uma amiga baiana, arquiteta negra, filha de médico e de professora, logo, classe média com certeza, diante da ignorância de quem achava que as comidas típicas da Bahia são as do cotidiano, estrilou: “Não há quem aguente comer temperado com dendê todo santo dia! Aqui é como em todo canto. Miserável come os restos que lhe dão. Pobre come como pobre; classe média, como classe média; e rico, como rico. Há arroz e feijão em todas as mesas. A classe média come arroz, feijão, bife, batata frita e uma saladinha qualquer de Norte a Sul do país desde os anos 60. E churrasco é comida de festa nas favelas e nas mansões em todo canto desde quando a gauchada tomou conta da ditadura. E por que acham que na Bahia é dendezaiada todo santo dia?”

Já vivi inundada de cheiros e sabores de comida goiana e massas genuinamente italianas; e de um misto de comida mineira com carioca a um ponto que eu não saberia dizer hoje se a minha cozinha é genuinamente maranhense ou de base maranhense com pitadas “goiana-italiana-carioca-mineira”. Embaralhei as cartas? É um pouco assim: fazemos arroz (torrado, soltinho…) e feijão (cremoso), como em Goiás; e massas ao estilo italiano, heranças de um marido goiano, cozinheiro de muitos dons. Com outro, não versado em cozinhar e não sendo um bairrista culinário, o veio maranhense de minha cozinha reapareceu mais amiúde e agora é perene. Ponto final!

Todavia não sei mais fazer feijão à moda do sertão do Maranhão: caldo meio engrossado e com feijões mais inteiros, com cebolinha e coentro. Há a variante de feijão sempre verde com quiabo. E o feijão manteiguinha, pura delícia? Adotei o estilo goiano de fazer feijão, como o de fazer arroz, que no sertão é cozido só com água e sal, às vezes temperado com óleo, azeite de babaçu ou pedaços de toucinho (arroz de toucinho). Temos a famosa maria-isabel (arroz misturado com carne gorda de boi); o baião-de-dois (arroz misturado com feijão, preferencialmente verde); e a carne de sol.

A passeio em Beagá, vovó Maria, a personificação da ironia, não se conteve quando fiz fava com leite de coco e galinha caipira cheia: “Mulher, essa comida da tua casa é muito da sem rumo. Até que é boa, mas é uma mistureira danada. Comi por comer. Onde já se viu deixar a fava só um creme, sem caldo e sem caroço? A galinha tá mais ou menos, mas cozinhou demais, perdeu o gosto. Naquele dia do chambaril, o que era aquilo?”

Matou a pau, classificou a minha comida de sem identidade. Vai ver que é mesmo.

Matéria original

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