A banana e o “bom” racismo da intelectualidade “bacana”

Por Alexandre Figueiredo

O Brasil ainda é um país racista, machista, e ainda apegado a resíduos ideológicos herdados da ditadura militar, que tenta construir o progresso social com base em valores velhos e antiquados, fazendo o “novo” através do ultrapassado, pelo medo de perdermos antigos símbolos e ícones, por piores que eles sejam.

É um país que tem medo de ver em breve morrer Doca Street, símbolo de um velho machismo retrógrado e vingativo, e que, por outro lado, acredita que Valesca Popozuda, sub-produto de um outro machismo, mais festivo e sensacionalista, é “feminista”. Um velho machismo que não quer desaparecer, mesmo com a velhice frágil de um de seus ícones, e um suposto feminismo elaborado com bases machistas.

Um país que joga o samba autêntico para as elites Zona Sul, no caminho tendencioso da galeguização do blues norte-americano, sem dar a esses ritmos a oportunidade de serem feitos por novos artistas negros. Como se o povo pobre não pudesse ter a herança cultural de seus antepassados.

Nosso país tenta um meio confuso de promover a revolução social, seguindo uma “tradição” em que o Iluminismo chegou ao país mesclando defesa dos direitos humanos com valores escravagistas, e que acha que promoverá “revolução socialista” com valores neoliberais e bregalização cultural.

Isso influi até mesmo na visão que se tem das coisas. Machismo festivo e pseudo-feminista se alterna com machismo vingativo e “dono” das melhores mulheres. E o racismo festivo e pseudo-multirracial se alterna com o racismo moralista e socialmente “higienizador”.

Nesse fogo cruzado, pessoas combatem o racismo com pequenas tiradas de sutileza. Foi o caso do jogador baiano Daniel Alves, do Barcelona, que em partida contra o Vilarreal, no Campeonato Espanhol, no último dia 27, foi humilhado quando algum torcedor atirou uma banana, típico alimento de macacos, contra o jogador. Daniel é colega, no time, do jogador Neymar, de ascendência indígena.

DANIEL ALVES E A BANANA DO TORCEDOR

Paciente, Daniel pegou a banana e comeu, numa provocação discreta ao torcedor. É evidente que a comparação de negros a macacos é criminosamente pejorativa, mas, para um negro, é muito mais digno ele lidar com macacos, animais sem qualquer noção de maldade, do que com brancos racistas que não raciocinam sobre a diversidade racial que a Natureza brinda a qualquer ser vivo. Macacos seriam muito mais gentis, simpáticos e tolerantes do que os terríveis racistas.

O grande problema existente no Brasil é que o combate ao racismo e a afirmação da negritude ainda seguem valores próprios de um racismo sutil e politicamente correto, que impõe ao povo negro certos papéis e estereótipos, até mais cruéis do que se imagina.

Isso porque a intelectualidade “bacana” pegou carona na banana que Daniel Alves comeu, e mais uma vez foi posar de “defensora da negritude”, numa postura pseudo-progressista, expressa dentro dos cenários esquerdistas diante de muitos desavisados, devido ao seu teor sutilmente racista.

Paciência. Nossos intelectuais tão “legais” vivem ainda em 1910, ou então antes, nos tempos de Dom Pedro II. Sentem saudade dos subúrbios com muito lixo, doenças, promiscuidade, drogas, moscas voando sobre pratos de comida, embora naqueles tempos a cultura musical dos pobres fosse infinitamente melhor e mais instigante que a que se atribui hoje como “cultura do povo pobre”.

Tentam comparar o “funk” ao samba, e creditam como “negro” até um branquelo pálido como MC Guimê. Claro, branco fazendo “funk” é “negro”, e negro fazendo blues é “branco”, apesar de todos os registros históricos que comprovam a origem negra do blues. É porque, na memória curta de muitos, o blues que conheceram era o inglês, não o blues original do Sul dos Estados Unidos da América.

Mas isso é compreensível, porque a nossa intelectualidade, tão “bacana” e dotada de muita visibilidade e plateias lotadas e entusiasmadas, na verdade segue uma linhagem de intelectuais e ativistas que, no século XIX, dizia defender entusiasmadamente o Iluminismo e a defesa dos direitos humanos, mas também defendia a escravidão e não considerava índios e negros dignos de cidadania.

E agora nossos intelectuais “bacanas” tentam associar o “funk” a tudo. À Semana de Arte Moderna, à filosofia, ao feminismo, ao punk, à moda de vanguarda. E sempre que podem associam o “funk” à negritude, agora usurpando nomes do passado como Itamar Assumpção, Wilson Simonal e Jackson do Pandeiro para assinarem embaixo sem estarem aqui para prestar qualquer queixa no cartório.

Insatisfeita, agora nossa intelectualidade “bacana” tenta usurpar o grande Milton Nascimento, separando-o de seu colega e afim Chico Buarque, com quem fez um dueto marcante, e jogar o cantor carioca-mineiro para apoiar funqueiros e bregas.

E logo Milton, que foi genial desde seus primeiros discos, do contrário dos neo-bregas dos anos 90, que só na última hora acham que MPB é melhor que brega e, com 20, 25 anos de carreira tentam fazer algo supostamente “mais decente”, porém muito forçado, tendencioso e oportunista.

Como um Leandro Lehart que, em 25 anos de carreira, tenta fazer tardiamente o que Monsueto já fazia, e mil vezes melhor, logo no começo da carreira. Temos um patrimônio musical rico, sobretudo negro, e muitos sambistas modernos do passado bem melhores que os canastrões Lehart, Alexandre Pires, Belo, Thiaguinho e Péricles, e poucos se dão conta disso.

NEGRITUDE E PATRIMÔNIO CULTURAL

É só pesquisar os discos de Monsueto, Noite Ilustrada, Jorge Veiga, Roberto Silva, anteriores e mestres de Wilson Simonal, para percebermos que até as trolagens feitas na Internet em defesa de, por exemplo, Alexandre Pires e Belo, não passam de perda de tempo de uns moleques internautas submissos à mídia e ao mercado.

Ou então a estreia fonográfica de Elza Soares, que em 1960-1961 já surpreendia pela sua rica informação musical, juntando samba do morro e jazz – atualmente Elza absorveu até o hip hop em sua produção musical – , conquistando até mesmo o apoio de um desconfiado Ary Barroso que, em seu programa de rádio, até se arrependeu de ter feito uma piada irônica numa pergunta dirigida a ela. O que Elza fez e continua fazendo é de deixar as pretensiosas funqueiras comerem nuvens de poeira.

Temos uma negritude forte, combativa, que deixou um legado passado de artistas, intelectuais e ativistas de valiosa contribuição para a cultura do povo brasileiro em geral. Seriam necessários vários volumes de livros só para citar o que nossos principais negros fizeram pelo país, para entendermos a participação deles em muitas conquistas e progressos realizados no Brasil.

Só que os intelectuais etnocêntricos, “tão legais” e “tão admiráveis” e “injustiçados” por causa de seu apreço pelo “popular”, acham que negritude só deve ser a do “funk”, a do “pagode romântico” ou do “pagodão” tipo “Lepo Lepo”. As demais expressões da negritude, para a intelligentzia, são meros detalhes, satélites em volta do “planeta funk”.

Daí o “bom” racismo da intelectualidade “bacana”. Mais uma vez, as elites pensantes, justamente aquelas que o leitor médio de inclinação mais ou menos progressista sente profunda admiração, atuam num racismo sutil, seguem a mesma agenda dos antigos “iluministas de engenho” do Segundo Império, que misturavam filosofia iluminista com valores escravistas.

O intelectual “bacaninha”, pró-brega mas metido a ativista “sério”, quer ser anti-racista com sua visão etnocêntrica do que deve ser a negritude brasileira. O negro brasileiro tem que ser funqueiro, jogador de futebol, se é mulher tem que ser funqueira ou prostituta, a pobreza não é uma circunstância, mas um ideal de vida, a moderna escravatura defendida por modernos “iluministas de engenho”.

O “resto”, que é a negritude autêntica defendida por gente do passado, presente e futuro que vai de Zumbi dos Palmares até o ator Lázaro Ramos, passando por gente que varia de Milton Santos a Wilson Simonal, de Ruth de Souza a Taís Araújo, de Cruz e Souza a Jackson do Pandeiro, são só “pequenos detalhes” dentro de um “funkocentrismo” em que o “funk” é visto pelos intelectuais como a medida de todas as coisas no Brasil.

VÍCIO EM CONSTRUIR O “NOVO” COM BASES VELHAS E PODRES

E tudo isso num país que não consegue resolver seu conservadorismo em diversos aspectos, achando que podemos fazer novos edifícios de progresso social com estruturas arcaicas, num sério vício de construirmos o “novo” com bases velhas e até apodrecidas.

Daí o medo de muitos de verem machistas com um passado tabagista de arrepiar (inclusive com antigas e pesadas aventuras no álcool e nas drogas) morrerem a qualquer momento aos 80 anos, num país em que jornalistas, atores e músicos morrem bem antes dessa idade com um histórico tabagista muito mais modesto.

Daí o país que contrói o feminismo e a diversidade social, cultural e até racial com bases machistas, coronelistas, grão-midiáticas e até racistas. Um país que prefere apostar no “novo” diluído em bases velhas, apodrecidas e antiquadas, como se fosse mais seguro transformarmos o país sem rompermos com as estruturas arcaicas que bloqueiam esse mesmo progresso.

O ato de Daniel Alves foi sutil e simpático. Ele pareceu indiferente, mas deu seu recado. Isso não fará o futebol virar um reduto de ativismo, até porque a atitude do jogador foi pessoal. O recado que ele deu foi apenas um discreto recado ao mundo.

Esse mundo que ao mesmo tempo se ilude e se revolta demais com as imagens estereotipadas do Brasil, com os preconceitos institucionalizados, não só os preconceitos da rejeição, mas os da aceitação, difundidos pelos intelectuais “bacanas”, os “bons” preconceitos e o “bom” racismo que determina que pessoas pobres e negras só podem ser funqueiros, prostitutas e craques do futebol.

Daí que o Brasil do “funk” sonhado por intelectuais não é o Brasil do samba nem do futebol-arte do passado, mas o Brasil estereotipado e sonhado por uma intelectualidade tida como simpática e admirável, mas herdeira dos mesmos preconceitos “humanistas” de antigos intelectuais do iluminismo escravagista dos tempos do Segundo Império.

 

 

 

Fonte: Minguau de Aço

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