Era um esquete comum protagonizado pelo palhaço Benjamim de Oliveira (1870-1954): ele imitava Jesus Cristo e ficava de braços abertos. Mas aí, acima de sua cabeça, uma goteira molhava seu corpo, que acabava ficando listrado, desencadeando risos na plateia.
“Porque ele fazia whiteface”, comenta a pesquisadora, escritora e artista Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, em São Paulo. É a performance oposta ao blackface — no caso, Oliveira, um artista negro, pintava seu rosto de branco para o número em que representava Cristo.
Embora o propósito fosse cômico, a cena suscita várias camadas de interpretação sobre o racismo histórico — não somente do Brasil, mas da cultura cristã que costuma caracterizar Jesus como um loiro europeu.
Oliveira acabou conhecido como o primeiro palhaço negro brasileiro, embora especialistas contemporâneos costumem ressaltar que tratá-lo como primeiro significa invisibilizar tantos outros e tantas outras artistas circenses negros que vieram antes ou ao mesmo tempo que ele. Benjamim de Oliveira foi o primeiro a romper a invisibilidade, caindo no gosto do status quo carioca da metade inicial do século 20.
Nascido em Pará de Minas, ele era filho de Malaquias Chaves, um homem que ganhava a vida capturando escravizados fugidos e de uma escravizada chamada Leandra de Jesus. Tanto ele quanto seus oito irmãos nasceram alforriados. Mas como ele apanhava diariamente de seu pai, decidiu fugir de casa aos 12 anos, ingressando em uma companhia circense chamada Sotero.
Não tinha nada a ver com a pompa dos grandes circos atuais. Era um grupo mambembe de artistas que andava em carroças pelo interior de Minas, apresentando-se de cidade em cidade. Oliveira logo aprendeu alguns números e se apresentava tanto como acrobata quanto como trapezista.
Contudo, a violência seguia — se não mais por parte do pai, agora praticada pelo dono do circo, que o espancava. Fugiu novamente, viveu um tempo com ciganos nômades, foi confundido com escravizado fugido, chegou a ser preso. Enfim, envolveu-se em inúmeras situações até conseguir um emprego no circo de Frutuoso Pereira, que ficava na Várzea do Carmo, em São Paulo.
Encantou até o presidente
Ele tinha 19 anos e era tratado de moleque pelos donos da companhia quando estreou como palhaço. Teve a missão de substituir o titular, que havia adoecido. Sem aptidão, foi um fracasso — acabou vaiado pelo público.
Aos poucos, contudo, foi se soltando. Nas apresentações seguintes passou a soltar a voz, caprichar em saltos e piruetas e mesclar números de dança aos esquetes cômicos. Um ano depois já tinha se tornado artista cobiçado por outros circos e acabou aceitando a proposta de mudar para a companhia de Antônio Amaral.
E seguiu mudando de lonas e aumentando seu público. Logo se fixou no Rio de Janeiro e tinha entre seus admiradores figuras notáveis como o presidente Floriano Peixoto (1839-1895), o escritor Artur Azevedo (1855-1908) e, décadas mais tarde, o ator Procópio Ferreira (1898-1979).
“Foi ele quem lançou essa história de primeiro palhaço negro”, conta a historiadora Ermínia Silva, da quarta geração de uma família circense e autora do livro Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil.
Silva relata que, mesmo ela sendo ligada ao mundo do circo, Oliveira lhe era “invisível” até o início do seu mestrado. “Então eu também passei a acreditar que ele tinha sido o primeiro palhaço negro do Brasil. Esses mitos construídos, eles têm um lado bom: revelam a pessoa, mostram a pessoa, dão visibilidade. Por outro lado, o mito se torna único. E isso é um problema, principalmente em um país de origem escravocrata. Os outros artistas negros que trabalharam no circo acabam eliminados da memória”, explica a historiadora.
“Essa imagem do primeiro palhaço negro colou muito forte nele”, admite. Em grande parte, pela sua atuação no Rio. “Entre 1905 e 1940 ele se tornou um produtor de visibilidade, de imagem. Ele adquiriu visibilidade e rompeu um nicho: estava no lugar certo, na hora certa, com presença constante na mídia da época, que era a mídia impressa”, analisa Silva. Isto tudo na cidade que era a capital da República que, até então, ditava a moda e a cultura do país.
Tamaoki acrescenta ainda o papel de Oliveira para a consolidação de um gênero tipicamente brasileiro: o circo-teatro. “É um tipo de espetáculo que nasceu aqui: tinha uma primeira parte com números de variedades circenses, como acrobacia, equilibrismo, ilusionismo, malabarismo, adestramento e palhaço. E na segunda um ato teatral”, contextualiza. “Muitos falam que o Benjamim de Oliveira foi o inventor do circo-teatro. Mas é mais correto dizer que ele colaborou muito para consolidar esse gênero.”
Como dramaturgo, ele escreveu peças de sucesso popular, como O Diabo e o Chico, Matutos na Cidade e A Noiva do Sargento. Como ator, encarnou o indígena Peri, da obra O Guarani, de José de Alencar (1829-1877), encenada e filmada no Circo Spinelli em 1908 — o filme, chamado Os Guaranis, foi lançado pela Photo-Cinematographica Brasileira. Também emprestou seu vozeirão para a música, gravando Caipira Mineiro e Se Fores ao Porto, entre outras.
Militância implícita
Segundo as pesquisas de Silva, quase não há referência à questão racial nas entrevistas concedidas por Oliveira. “Muitos dizem que ele não era militante. Na verdade, ele era, mas não fazia nada de modo explícito”, diz ela.
“Sua luta na questão da negritude era cotidiana. Ele não falava diretamente de preconceito, mas em suas peças sempre mostrava a questão do negro como subalterno, mas que vence. E a grupo de artistas que trabalhava com ele, na maior parte, era formado por negros e negras”, ressalta a historiadora.
O palhaço foi membro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, confraria católica criada no período da escravidão. “Era uma forma de militar na época”, lembra Tamaoki. “Além da importância que ele tinha como protagonista no teatro popular que foi o circo-teatro. Ele era um protagonista negro que fazia papéis de barão, de conde e até de Jesus Cristo.”