Como Dona Ivone Lara se afirmou, “pisando devagarinho”, no mundo masculino do samba

FONTEPor Júlia Dias Carneiro, da BBC Brasil
Dona Ivone Lara Foto: Silvana Marques/Divulgação

Se até hoje contam-se nos dedos as mulheres que compõem sambas nas escolas do Rio, a prerrogativa estava há décadas de ser “coisa de mulher” quando Dona Ivone começou a desbravar um território até então estritamente masculino, em sua adolescência, nos idos dos anos 1930.

Dona Ivone nasceu no meio do samba e revelou desde cedo talento para a música, mas seguir o chamado não foi fácil. Os primeiros passos foram acompanhados por puxões de orelha da tia e incluíram pedido dela para que um primo sambista apresentasse suas composições sob seu nome – para ver se, ocultando a autoria feminina, eles seriam acolhidos.

Ela morreu na segunda-feira no Rio de Janeiro, após duas semanas internada com infecção renal. Tinha completado 97 anos na última sexta-feira. Seu corpo foi velado na quadra da escola de samba da Império Serrano, e a prefeitura do Rio declarou luto oficial de três dias. A sambista teve sua vida atrelada à história da agremiação da Serrinha, na zona norte do Rio, tendo participado de sua fundação, em 1947.

Conhecida como “a grande dama do samba”, Dona Ivone se tornou a primeira mulher na história a compor um samba-enredo no concorrido carnaval carioca, em 1965.

“Os cinco bailes tradicionais da história do Rio” foi composto em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau para o Império, e virou um marco, finalmente alçando Dona Ivone à ala de compositores da escola – embora já estivesse compondo havia mais de dez anos na agremiação, diz a historiadora Rachel Valença.

 Ela diz que Dona Ivone foi uma “feminista sem saber”.

— Ela soube esperar — diz Rachel, coautora do livro Serra, Serrinha, Serrano: o Império do Samba e amiga de Dona Ivone.

— Ela cumpriu todos os ritos da sociedade, como casar, ter filhos, cuidar da família. Não foi uma mulher que teve uma vida contestatória a esses cânones social. Mas foi feminista no sentido de que sempre acreditou profundamente na possibilidade de ser alguém independentemente do marido e das convenções sociais.

Nascida em Botafogo em 1921, na época batizada de Yvonne, a compositora teve uma infância conturbada, perdendo o pai, mecânico, aos 3 anos, e a mãe, dona de casa, aos 11. Órfã, viveu anos no Colégio Municipal Orsina da Fonseca, um internato.

— Talvez por ter ficado órfã tão cedo, ela sempre sentiu a necessidade de trabalhar e ser capaz de se manter. Isso no fim dos anos 1940 não era nada comum, principalmente para uma mulher pobre e negra. Ela fez questão de estudar e se formar em uma época extremamente adversa, em que as mulheres eram preparadas para casar.

No internato, tinha aulas de música e canto coral. Nas férias, ia para a casa do tio, Dionísio, que tocava chorinho – e lá aprendeu a tocar cavaquinho e pegou a “malícia do samba”, conta Rachel.

— Ela foi reconhecida como uma pessoa superdotada musicalmente, tinha uma musicalidade impressionante. Isso a família via com bons olhos. Já o samba… A tia que a criou após a morte dos pais queria que ficasse longe daquele mundo, longe da música popular. E ela fica muito dividida.

Mas Dona Ivone se casou com um sambista, Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, que presidia a Escola de Samba Prazer da Serrinha – que viraria a Império Serrano. “E acaba sendo levada de vez para o mundo do samba”, explica Rachel.

O samba, entretanto, não se apresenta como uma opção profissional. Dona Ivone completou a formação de enfermeira e depois de assistente social, profissão que considerava sua carreira primária e da qual falava com orgulho.

Foi só depois de criar os filhos e se aposentar que dedicou sua energia ao samba, se lançando como cantora e compositora e investindo na carreira solo, no fim da década de 1970 – tendo como principal parceiro Délcio de Carvalho, com quem lançou sucessos como Sonho Meu e Acreditar.

Segundo a jornalista Mila Burns, autora de Nasci para sonhar e cantar (Record, 2009) – fruto de sua dissertação de mestrado em antropologia, que tinha como tema Dona Ivone Lara -, a compositora tinha uma percepção aguçada do meio em que estava inserida e das limitações da época, e traçou estratégias para lidar com elas.

— Ela definiu isso muito bem quando falou em pisar nesse chão devagarinho — diz Mila, referindo-se ao samba Alguém me avisou (“Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/Mas eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou/ Pra pisar nesse chão devagarinho”).

— Acho que um exemplo muito bom disso é que no começo ela pedia para o seu primo, o Mestre Fuleiro, apresentar sambas que ela compunha como se fossem dele. Todo mundo aplaudia. Ela dizia que isso não causava revolta, pelo contrário. Ela achava ótimo porque assim sabia que o samba era bom — diz Mila.

Ela só foi assumir o protagonismo mais tarde, “quando sentiu que já podia”.

— Isso mostra que ela tinha uma noção muito forte do meio em que estava navegando. Ela reconhece que há preconceito, mas adota uma estratégia de fazer as coisas devagar e conquistar o espaço aos poucos.

Mila diz que quem sente pena de Dona Ivone por só ter se dedicado ao samba integralmente após a aposentadoria desconsidera as escolhas que ela quis fazer.

— Ela não tinha nada de coitada. Sempre dizia que fez tudo do jeito que queria — diz Mila, professora assistente de Estudos Latinoamericanos na Lehman College, da City University of New York (Cuny).

— Ela primeiro quis garantir o seu pão, com seu trabalho como assistente social, mantendo a música como uma coisa secundária de fim de semana.

Mila diz que a lembrança que vai guardar das entrevistas na casa de Dona Ivone Lara em Madureira condiz pouco com a imagem de “senhorinha fofinha” que se disseminou entre uma nova geração que só a conheceu na fase mais tardia.

— Sempre vou me lembrar dela como uma mulher tremendamente forte, assertiva, às vezes difícil, mas que sempre sabia o que queria, e sempre deixou isso muito claro — afirma.

Mila agora está prestes a lançar um segundo livro sobre Dona Ivone Lara nos Estados Unidos, sobre o álbum Sorriso Negro, que foi lançado no começo da abertura política na ditadura, em 1981, e marcou um momento de forte ascensão dos movimentos negro e feminista no Brasil.

— Ela nunca se declarou engajada politicamente, nunca se declarou feminista, mas teve um impacto gigantesco para as mulheres e a população negra em termos de representatividade — diz Mila.

Em um país em que a presença de mulheres no meio musical muitas vezes se dá na condição de musa ou de intérprete, Mila destaca a importância do exemplo de Dona Ivone como compositora.

— Ela soube navegar esse ambiente e dominar uma área ligada à intelectualidade e que nunca era atribuída a mulheres.

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