Como aquela mulher inteligente, melhor que eu nas exatas, agora acreditava em corrente de WhatsApp?
Por Ana Paula Lisboa no O Globo
No auge da discussão, ela gritou: “Jesus está voltando!”.
Eu respondi aos berros: “Sim, eu não vejo a hora! Tomara que ele venha logo e destrua vocês! Vocês não são cristãos!”
Jesus estava ali, na pequena sala da casa da minha mãe, onipresente como sempre. Era a sala em que crescemos, brigamos, rimos e nos amamos. Aquela foi nossa primeira sala, antes dela a gente rodou mundo vivendo em salas de parentes e até de pessoas estranhas em que não podíamos tocar em nada. Eu lembro das coisas que quebramos em nossa casa e como era bom poder quebrar coisas que eram nossas.
Nos criamos uma à outra, porque muitas vezes só éramos nós enquanto minha mãe trabalhava. Tínhamos nossos acordos de irmandade em que eu limpava toda a casa e ela cuidava da cozinha, porque eu odiava lavar louça. A casa não era mesmo grande. Nunca tivemos os mesmos amigos, estudamos por pouco tempo na mesma escola, e ela sempre foi cobrada a ser “a filha exemplar” que eu era, enquanto filha mais velha. Dividimos o mesmo quarto por 20 anos, em muitos deles dividimos a mesma cama.
Quando nosso irmão foi assassinado, foi ela quem chegou primeiro, foi ela quem me ligou, foi ela a primeira a me abraçar.
Como então aquela mulher inteligente, que sempre foi melhor que eu nas exatas e nas artes visuais, agora acreditava em correntes de WhatsApp?
Jesus estava ali na sala enquanto brigávamos e assistíamos à apuração dos votos. Ele estava pendurado na parede, loiro e de olhos claros, seu coração pegando fogo. Eu odiei Jesus e seu olhar sonso de quem vê tudo e não faz nada. Como Ele pode deixar seu nome ser usado em vão para eleger hereges? Como Jesus pode deixar o domingo, seu dia consagrado, ser um dia de desesperança? Como Jesus permite que eu brigue com ela, que é meu próprio sangue, por causa do Seu nome?
Jesus estava lá com sua pele branca enquanto os negros atravessavam o mar. Ele usou toga e crucifixo em 1964. Agora ele está aqui, representado por uma cruz vazia, mas mais uma vez sendo justificativa para o ódio. Jesus viu quando mestre Moa do Katendê foi morto com 12 facadas nas costas. E então eu odiei minha irmã por amar Jesus.
Logo ele, que pregou o amor acima de tudo, que ensinou a não viver pela espada, que fez dos seus amigos a sua família, que deu a César o que era de César.
Minha irmã tem o desespero de quem cria dois meninos pretos numa favela onde tem tiroteio dia sim e o outro também. Minha irmã tem a esperança de criá-los para o amor e o respeito a todos, num espaço em que odiar o outro é muitas vezes a única forma de pertencer a um grupo. Minha irmã tem medo de perder os filhos e achou na igreja as paredes para protegê-los. Eu odeio esse Jesus que minha irmã ama, mas amo o Jesus que posso ver nos olhos dela.
Jesus, na verdade, é uma mulher preta. Jesus foi eleita nos corpos da Renata Souza, Dani Monteiro e Mônica Francisco como deputadas estaduais em suas primeiras candidaturas. Jesus foi eleita no corpo de Talíria Petrone, que agora é deputada federal. Jesus ressuscitou no último domingo em muitos corpos pelo Brasil. Jesus vive, mesmo que joguem pedra na cruz. Jesus está voltando.