No mais comovente enredo de sobrevivência deste ano da graça de 2023, quatro crianças indígenas foram encontradas com vida depois de 40 dias num adensado pedaço da Amazônia colombiana. Os irmãos estavam desaparecidos desde 1º de maio, quando o avião em que viajavam caiu na selva, matando os três adultos no voo, entre os quais a mãe deles, Magdalena Mucutuy Valencia. As buscas intensas envolveram militares e um grupo de nativos íntimos do território, que localizaram os miúdos de 13, 9, 4 e 1 aninho de idade, na sexta-feira passada. Milagre? Só que não.
Houve comparações com a obra de Gabriel García Márquez, expoente do realismo fantástico latino-americano, Nobel de Literatura em 1982. Mas, para quem, nessas bandas, cresceu entre mitos e ritos afro-ameríndios e se acostumou a conviver com o invisível, o que existe é realidade. As crianças da etnia hitoto foram salvas não por heroicos soldados do Exército nacional, tampouco por obra do Deus dos colonizadores, mas por saberes e divindades ancestrais.
No início da semana, Alex Rufino, indígena ticuna especialista em cuidados da selva, foi quem primeiro apontou, à BBC News Mundo, o equívoco da análise do episódio sob as lentes domesticadas do aculturamento: “Os territórios indígenas sempre foram vistos com uma narrativa herdada da conquista, da religião católica. Porém não falamos de milagres, mas da ligação espiritual com a natureza”.
Anteontem foi a vez de Vanda Witoto, líder indígena no lado brasileiro da mesma etnia das crianças resgatadas no país vizinho, reforçar o recado. À BBC Brasil, a técnica de enfermagem e professora na comunidade Parque das Tribos, em Manaus (AM), disse que a autonomia, o manejo da floresta e a busca por alimentos na selva são ensinados às crianças indígenas desde muito cedo: “A educação se dá no cotidiano e na observação dos fazeres dos mais velhos. Por isso, não consideramos milagre. Foi a força da espiritualidade, do conhecimento e da sabedoria ancestral do nosso povo que manteve as crianças vivas”.
Quem teve a oportunidade de degustar as 85 páginas de sabedoria do líder indígena e escritor Ailton Krenak no best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” (Cia. das Letras, 2020) não treme ao ouvir Rufino ou Vanda. Sabíamos que os crenaques têm como avô o Rio Doce, ferido de morte pelo rompimento criminoso da barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana (MG), sete anos atrás. “É uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas”, ensinou o mestre.
Quem sentiu a ventania que Iansã enviou para varrer o Rio de Janeiro no fim da noite de 14 de março de 2018, quando Marielle Franco e Anderson Gomes, seu motorista, foram assassinados, tem pleno conhecimento de que o invisível se manifesta. E protesta. E protege.
No último 7 de junho, quando o STF retomou o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que discute o marco temporal para demarcação dos territórios indígenas, Ana Carolina Amaral, secretária executiva da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental, publicou na Folha de S.Paulo: “Para que o país possa discutir a tese jurídica do marco temporal, é preciso, antes, estabelecer um tratado filosófico: não falamos da mesma terra quando ela é significada por brancos ou por indígenas. Para nós, a terra é o chão, onde se pisa, ou ainda uma propriedade que nos pertence. Na visão indígena, os humanos é que pertencem à terra. Ela é uma extensão dos seus corpos”.
É por isso que o voto proferido pelo ministro Alexandre de Moraes — antes de André Mendonça pedir vista e interromper o julgamento — é tão nocivo aos povos originários quanto o de Nunes Marques, que validou a tese de que a data de promulgação da Constituição, em outubro de 1988, é o limite para reivindicação de território. O relator Edson Fachin afirmou que o direito dos indígenas à terra deve prevalecer, como estabelece o artigo 231 da Carta Magna.
Moraes, com imensos serviços prestados à democracia, rejeitou o marco temporal. Evocou, contudo, a segurança jurídica para propor conciliação com produtores rurais que, de boa-fé, compraram terras. Reconhecida a ocupação tradicional, a União deverá indenizar os proprietários sobre o valor total dos imóveis, não apenas sobre benfeitorias. É proposta que, à luz da sempre limitada capacidade fiscal do Erário e dada a extensão dos territórios indígenas, inviabilizaria demarcações.
O ministro também defendeu que, quando uma ocupação consolidada não puder ser desocupada em favor dos indígenas, a União fará a compensação com terras equivalentes. É o mesmo que sugerir a Krenak e seu povo trocar de avô. Sob lentes viciadas numa visão de mundo, confunde-se o patrimônio de uns com o que, para outros, é pertencimento, identidade, parente.