Deixar-se

(Foto: Lucíola Pompeu)

Todomundo conhece, ou vai conhecer, a dor de ser deixado. Milhares de canções falam disso há gerações e gerações. Ser trocado por um coleguinha na infância, esquecido por uma amiga em qualquer idade. Ser abandonado por um amor. A sensação sentida não é bolinho, nem melzinho na chupeta. Difícil tirar de letra a experiência do abandono. Talvez seja semelhante a observar, do cais, um barco naufragar. Depois de tudo, só ficam espumas brancas e a imensidão azul.

Por  Fernanda Pompeu Do Yahoo

Mas existe outra dor, mais velada e menos homenageada em prosa e verso, que é a dor de quem deixa. Ou mesmo a pena de quem trai. Pois se você ainda não traiu algo ou alguém, pode escrever: vai rolar. É evidente que há uma hierarquia na traição, por exemplo, trair ideias é menos grave que trair pessoas. Trair estranhos é mais fácil do que apunhalar conhecidos. Trair aqueles que amamos, então, é terremoto com mais de 9 graus nas escala Richter.

Trair a si mesmo? Uau! É coisa de rasgar o peito com peixeira afiada. Apertar o cérebro com chave inglesa. No entanto fazemos não uma só vez, mas algumas pelo escorregar da vida. Eu já experimentei. Deixe-me levar para situações que desdiziam e até negavam valores que creio. O mau-estar foi total e na maior parte, com esforço e coragem, voltei ao prumo. Como forma de compensação reafirmei os antigos valores com ilusão e entusiasmo.

No entanto, às vezes são os valores, as crenças, as verdades, os ideais que nos traem. Eles se apequenam ou arrancam a máscara com que nos seduziram. Acho que é o que ocorre com o crente que deixa de acreditar em Deus, com o capitalista que se desilude dos bens que o dinheiro compra. Com o casal que percebe que a felicidade escapou pelo ralo do apê. Com o convicto solteirão ao se dar conta que a vida de casado seria o céu. A garota de programa sonhando com a vida num convento. A madre superiora fantasiando com a rotina de um bordel.

Nesses momentos radicais, de inflexão, de pezinho na beira do penhasco, é que começamos a entender a arte de se deixar. A mais profunda entrega ao que ainda não conhecemos, mas queremos provar. O caminho a ser desbravado, pois gostamos de onde ele nos levará. Em frente, há só horizonte. Por cima, nuvens ciganas. Ao lado, tudo o que vivenciamos. Em baixo, a fluidez das águas. Friozinho na barriga. Adeus e avante!

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