Desconseguir

Um grande aprendizado este ano foi aprender a pedir ajuda e Todos os meus conseguidos foram vividos, aprendidos e celebrados em grupo

FONTEO Globo, por Ana Paula Lisboa
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

Eu ia dizer que falhei. E na verdade falhei sim, falhei feio, falhei rude. Mas não sei se esta é a melhor palavra. Falhar é verbo transitivo, porque quem falha, falha sempre em alguma coisa (ou com alguém). Mas às vezes não, às vezes falhar é a coisa, o ato em si, sem precisar de complemento algum.

A verdade é que, com ou sem a necessidade de complemento, é difícil assumir a falha, no singular ou no plural, mais ainda em tempos instagramáveis.

Ninguém erra, ninguém falha. Assim como Fernando Pessoa, é cada vez mais complicado conhecer alguém que já tenha levado porrada, que ande por aí com o olho roxo, um braço quebrado, o coração partido. (Quase) todos os meus amigos têm sido campeões em tudo.

Eu estava em São Tomé e Príncipe quando escrevi e minha última coluna de 2022. Inspirada pela filosofia leve-leve do país insular, prometi a mim mesma que teria um ano kunanga. Revisitando, kunanga é uma palavra em kimbundo, usada pra designar pessoa sem ocupação, sem trabalho. E, repito, a preguiça e o ócio são direitos importantes que são desrespeitados o tempo todo. Dizer que o brasileiro ou o angolano são preguiçosos é uma mentira deslavada.

Como escrevi, ser kunanga é um estigma, mas também uma vontade geral não confessada e era tudo que eu queria, um ano leve-leve. Perceba, leve-leve não é procrastinação, nem malandragem, é um uso mais acertado da energia. E, sabemos, energia é coisa cara, preciosa.

E é por isso que digo em voz alta, agora escrevendo a última coluna do ano na província de Inhambane, Moçambique: eu falhei.

Falhei feio no meu comprometimento com o descanso, com o ócio, falhei comigo mesma. Este ano entendi aquelas crianças que choram quando estão com sono e casadas, que parecem não saber o que fazer com o próprio corpo exausto da vida. A vida é grande quando se é criança. Quando se é adulto, também.

Mas pensando bem, há um outro verbo, uma palavra angolana melhor que “falhar”: desconseguir.

Desconseguir carrega bem menos culpa, porque em algum momento você realmente conseguiu, mas depois isso escapou das suas mãos. Alguns dicionários traduzem o desconseguir como sinônimo de “não conseguir”, mas é muito diferente.

Quando você desconsegue, geralmente foi por um fator externo, em que você não teve possibilidades ou poder de alteração. Desconseguir é um quase, é um conseguido desfeito, um plug desconectado, mas que em algum momento já esteve lá, gerando luz.

Mas não há vergonha porque a gente desconsegue o tempo todo, especialmente em um mundo onde o que independe da nossa vontade tem tanta força. Mulheres desconseguem muito, ainda que a gente tente agarrar o conseguido com todas as forças. Eu, pelo menos, tento.

Certamente um grande aprendizado este ano foi aprender a pedir ajuda. Todos os meus conseguidos foram vividos, aprendidos e celebrados em grupo, o que faz as vitórias terem um sabor muito mais delicioso.

E, olha, eu me lembro bem do dia em que venci. Foi em 6 de outubro. Eu havia perdido feio no dia anterior, mas no dia 6 de outubro ninguém me segurou, nem eu mesma. No áudio que enviei pra amiga Ana Clara eu disse: “Vencer é possível, mesmo depois de uma derrota pesada. E vencer é muito bom, vencer é viciante.”

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