Desigualdade de gênero gera sobrecarga materna e impacta desenvolvimento de crianças, dizem especialistas

Investir na Primeira Infância é investir na sociedade; para especialistas, responsabilidade deveria ser de toda a sociedade

FONTEPor Aline Sgarbi, da CNN
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O dia na casa de Letícia, 29 anos, começa às 6h. Mãe de dois filhos – um de 5, e outro, de 6 anos – ela trabalha, cuida das crianças, da casa e faz faculdade, com aulas também aos sábados. Sua rotina inclui lavar louça entre uma reunião e outra, pensar no almoço de todo mundo, arrumar mochilas, dar banho, vestir e escovar os dentes das crianças e organizar toda uma logística para levá-los à escola – um estuda na rede municipal, o outro, na estadual, e os horários são diferentes.   

O marido de Letícia é bastante participativo. “Ronaldo divide bastante, mas a carga mental ainda é maior para mim, até porque também tenho que pensar na faculdade”. O resultado é que as crianças ficam muito mais tempo nas telas do que Letícia gostaria. “A alimentação é outra coisa que pega bastante, porque não tenho tempo de preparar algo legal para eles”, conta ela, que acaba recorrendo à comida congelada. 

A sobrecarga materna não é novidade para quem tem criança em casa. Segundo a PNAD Contínua, do IBGE, as mulheres ainda dedicam mais que o dobro do tempo que os homens cuidando da casa e de pessoas. Por semana, são 23,1 horas, contra 11,7 dos homens.

O relatório “Esgotadas: empobrecimento, a sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres”, da ONG Think Olga, mostra que 86% das mulheres ouvidas na pesquisa consideram que têm uma carga de responsabilidade muito grande. Uma em cada seis mulheres sofrem de ansiedade, de acordo com o mesmo levantamento. Insegurança financeira e as duplas ou triplas jornadas são os dois principais fatores de pressão sobre a saúde mental feminina. 

Mas o que isso tem a ver com a infância? “Quando a gente fala de sobrecarga materna, normalmente a gente tá falando de uma mulher que é responsável por todo esse cuidado com a criança. Além da casa, além de várias outras situações ao redor dela. A qualidade desse cuidado com a criança tende a cair. O tempo de vínculo tende a cair. A irritabilidade da mãe tende a aumentar”.

Quem explica é a psicanalista Elisama Santos, que chama isso de ciclo do caos. “A mãe fica frustrada porque não consegue cuidar do filho da forma como gostaria. Cansada e frustrada, ela fica irritada. E irritada, cuida dele da forma que não gostaria. Então, fica frustrada de novo. Quantas e quantas mulheres não estão presas nesse ciclo constantemente?”. 

“A mãe sobrecarregada pode ter um burnout, sofrer de atribulações emocionais que acabam se refletindo na prática parental, que se tornam inconsistentes. Ela acaba punindo ou negligenciando a criança. E isso atrapalha o desenvolvimento das habilidades sociais, a regulação emocional, as atividades escolares. Pode gerar uma criança insegura, receosa, ou no extremo oposto, muito agressiva”, afirma Filipe Colombini, psicólogo e diretor da Equipe AT, que realiza atendimentos multidisciplinares de crianças e de pais. 

Elisa Altafim é psicóloga, mestre em psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, e estuda as práticas parentais. Para ela, a sobrecarga acaba impedindo que a mãe tenha interações de qualidade com a criança, que são fundamentais para o desenvolvimento especialmente quando se trata da Primeira Infância, fase que vai do nascimento aos seis anos de idade.

“Quando a gente fala de Primeira Infância, a gente está falando de um momento de extrema importância para que a criança se desenvolva, pra que ela adquira as diferentes habilidades, seja na área motora, na área social, na área emocional e na área cognitiva”, diz Elisa Altafim.

Ao contrário do que se acreditava há até poucas décadas, hoje já se sabe que o desenvolvimento cerebral começa antes mesmo do parto. Nestes primeiros anos de vida, as conexões neurais se formam a um ritmo de um milhão por segundo, e 90% das conexões cerebrais ocorrem até os seis anos de idade. Isso significa adquirir as primeiras capacidades envolvendo cognição, linguagem, habilidades sociais, personalidade e autoestima, por exemplo. Por isso, os especialistas acreditam que essa fase é tão importante para a educação e formação de um indivíduo. 

Infância e economia

Crianças com acesso a uma educação infantil de qualidade têm 24% mais chances de conseguir empregos melhores e salários maiores, segundo a ONU. Dados compilados pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que atua especificamente na área de Primeira Infância, mostram que uma educação que promova estímulos socioemocionais reduz em até 65% as chances de indivíduos cometerem crimes violentos, 40% as chances de eles acabarem presos, e 20% as chances de não terem um trabalho. Para o economista James Heckman, prêmio Nobel de Economia, cada dólar investido nessa fase da vida traz até 13% de retorno para a sociedade.

O raciocínio é simples: investir na Primeira Infância é investir na sociedade. Quem diz isso é Naércio Menezes Filho, economista, e integrante do Núcleo Ciência pela Infância. “Todos os estudos mostram que o mais importante para você ter crescimento econômico sustentável de longo prazo é você ter capital humano. O que é capital humano? As pessoas terem educação, saúde, física e mental, e habilidades socioemocionais. O que é investir nas pessoas? É desde o nascimento, desde a gestação. Senão você vai perdendo oportunidades. Fica mais difícil remediar problemas por você não ter investido na Primeira Infância”.

“Quando a gente fala de Primeira Infância, a gente fala de um sistema de garantias de direitos completo”

Érika Tonelli, cientista social

“Quando a gente fala de Primeira Infância, a gente fala de um sistema de garantias de direitos completo”, diz a cientista social Érika Tonelli, especialista em direitos das infâncias.

Ou seja, é necessário ampliar e democratizar o acesso à educação, saúde, alimentação e moradia, garantir direitos trabalhistas envolvendo questões da parentalidade, desenvolver e estimular espaços públicos empáticos e seguros, entre outros.  

Desigualdades no plural

No Brasil de 2019, 45% das mulheres que viviam com crianças de até 3 anos de idade não trabalhavam, contra apenas 10% dos homens. Entre as mulheres pretas e pardas, o número sobe para mais da metade.

Com a pandemia, a situação piorou, já que as mulheres foram as que mais perderam postos de trabalho. E ainda há um agravante: hoje, o país tem mais de 11 milhões de mães solo, e 15% dos lares são chefiados por elas, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas.   

Essa combinação de fatores leva a um resultado alarmante: 2,3 milhões de crianças brasileiras de 0 a 6 anos vivem em domicílios sem renda suficiente para garantir suas necessidades básicas de alimentos. Apenas 26% das crianças mais pobres na faixa de 0 a 3 anos estão na creche.  

A educação infantil, aliás, foi a que mais retrocedeu em número de matrículas após a pandemia. Ainda entre os mais vulneráveis, quase 80% das mulheres com baixa escolaridade não realizam o número mínimo de consultas pré-natal. Isso tudo aumenta os riscos de violência, desnutrição, e doenças evitáveis e prejudica a aprendizagem e o desenvolvimento.  

“A gente cansou de ouvir na pandemia, falando de retrocesso vacinal, retorno de indicadores negativos que a gente já tinha superado como país. Além da fome, a gente está falando de nascimento com baixo peso, a gente está falando da própria mortalidade materna”, diz Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. 

Há ainda um outro fator que a pandemia trouxe à tona e que tem relação direta com a sobrecarga parental. O número de mortes por acidentes domésticos subiu. Segundo o Ministério da Saúde, entre 2020 e 2021, foram mais de 1.600 mortes de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos. “A pandemia trouxe esse aumento de óbitos, e com esse tipo de acidentes: queimadura, sufocação, até numa faixa etária que não é comum, que é acima de cinco anos”, diz Érika Tonelli.  

“Os mais pobres não pararam de trabalhar durante a pandemia. E as crianças estavam sem escola, então o que a gente pode aferir é que havia crianças cuidando de outras crianças”, diz ela, alertando sobre a importância de compreender as causas para não culpabilizar a parcela mais vulnerável da população. “Até porque eu não posso dizer que uma mãe sai tranquila para trabalhar deixando um filho de três anos com uma criança de sete”.  

Mas a modalidade de home office também não evitou acidentes. “Não necessariamente por estar dentro de casa, os pais ou as mães tiveram as melhores condições para olhar os filhos, até porque estavam ali envoltos a mil e uma funções. Então, sim, em geral, essa sobrecarga faz com que você fique mais propensa a essas lesões não intencionais”, completa. 

Rede de apoio

Todos os especialistas ouvidos para a reportagem concordam em um ponto: é preciso uma rede de apoio que vá além da avó ou da babá. “O que a gente tem percebido é as mães tentando conquistar novos papeis, mas eles só se somam. A rede de suporte é muito restrita. E por mais que as mães terceirizem, ainda sobra mais pra elas”, diz o psicólogo Filipe Colombini.  

Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, defende que a mudança seja pautada por políticas públicas, mas que envolva toda a sociedade. “A Constituição diz que é uma responsabilidade do estado, da família, mas também da sociedade”. Elisa Altafim concorda. “Programas de transferência de renda e programas de apoio e suporte aos pais diminuem a violência contra a criança. Porque se os pais estão com insegurança alimentar, eles não vão conseguir brincar com a criança. Se o pai não tem um emprego, ele vai estar preocupado, vai estar em um stress parental. Então eles precisam desse suporte”. 

Elisama Santos, que é especialista em saúde mental, diz que até o autocuidado virou uma cobrança a mais para as mães. “Aí as pessoas dizem: ‘você está nervosa assim porque você não se cuida!’. Como se fosse simplesmente escolher: ‘olha só, a partir de agora vou me cuidar’. Meu amor, autocuidado é maravilhoso, mas ser cuidado é melhor ainda”. 

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