Dia 13 De Maio: A Maior Fake News de Nossa História

FONTEpor Irapuã Santana do Nascimento da Silva[1] para o Portal Geledés

 

Todo dia 13 de maio é “celebrado”no Brasil o dia da abolição da escravatura. Nesse ano, o marco chega a 131 anos de existência, mas, ao contrário do que parece à primeira vista, não há motivos para comemoração.

Em verdade, precisamos aproveitar a data para desmistificar a maior fake news da nossa história. Obviamente, como uma das maiores mentiras já contadas em nosso país, trata-se de uma grande composição de atos estatais que, no decurso do tempo, fizeram-se parecer benéficos, mas que, na realidade, utilizando o ideal de liberdade como cortina de fumaça, realizaram atos de extrema violência cujos efeitos são sentidos até hoje.

PARTE I – O NEGRO NO BRAZILIMPÉRIO

É nesse intuito que convido você para fazer uma viagem a partir de 1831, com a aprovação da Lei Feijó, de 07 de novembro. Ela é conhecida por ser uma das grandes responsáveis pelo surgimento da expressão “pra inglês ver”.

O diploma legislativo declarava “livres todos os escravos vindos de fôra do Imperio” e impunha “penas aos importadores dos mesmos escravos”.

O fundamento de sua criação era muito simples: concorrência pelo mercado internacional da cana-de-açúcar. A Inglaterra estava preocupada com os potenciais valores mais baratos da cana brasileira, devido à mão de obra escrava, e pressionava o governo brasileiro a extinguir a escravidão. Foi quando Diogo Antônio Feijó (à época ministro da Justiça) elaborou uma lei que sinalizava à Inglaterra que o Brasil adotava medidas no sentido de caminhar para a abolição.

No entanto, como não havia intenção de materialização desse objetivo, o tráfico negreiro continuou sem qualquer restrição.

ANO EMBARCADOS DESEMBARCADOS
1830 54.142 48.854
1831 5.371 4.723
1832 2.514 2.274
1833 3.129 2.648
1834 6.680 6.057
1835 11.352 10.280
1836 23.823 21.154
1837 45.725 40.785
1838 49.962 45.265
1839 63.813 57.485
1840 40.077 36.053
1841 28.295 25.198
1842 28.309 25.121
1843 23.917 21.419
1844 27.111 23.979
1845 24.335 22.038
1846 17.195 15.498
1847 21.887 19.588
1848 44.860 39.802
1849 62.691 53.536
1850 32.376 28.616
1851 81.40 6596
1852 11.38 984
1856 520 320
Total 627.362 558.273

 Apesar de ter havido uma queda nos anos de 1831 e 1832, a tabela acima demonstra que, no período compreendido entre 1830 e 1866, foram realizadas ainda 1.371 viagens de tráfico de escravos, com 627.362 escravos embarcados, chegando vivos em terras brasileiras 558.273 negros.[2]

Conforme demonstrado no gráfico acima, a queda definitiva das viagens dos navios negreiros ocorreu tão somente a partir de 1850, quando foram aprovadas duas leis: a Lei Eusébio de Queiroz e a Lei de Terras.

Então, somente após quase 20 anos, a partir da criação da Lei Eusébio de Queiroz (n° 581 de 04 de setembro de 1850), que o tráfico começou a ser combatido realmente. Contudo, se de um lado o tráfico foi combatido, de outro, nada era feito com relação ao comércio de escravos em território nacional, o que acabou por não haver uma mudança na vida dos escravos em solo brasileiro.

Em ato quase que contínuo, no dia 18 de setembro do mesmo ano, veio a Lei de Terras determinando que a aquisição de terras devolutas somente era possível mediante a compra, tornando-se estritamente proibida a obtenção do título de propriedade através do trabalho.

Os negros que já detinham a condição de posseiros eram submetidos a uma série de requisitos extremamente restritos para que fossem reconhecidos seus domínios, o que, na prática, significou retirar da população negra o acesso ao direito de propriedade.

Associado a isso, estava em vigor a proibição de acesso à escola pelos escravos, na medida em que somente era permitido que cidadãos brasileiros estudassem. Quanto aos negros não escravos, outras tantas restrições eram impostas a ponto de também inviabilizar o acesso à educação.

A Constituição de 1824 dispunha sobre a matéria, especificamente na combinação entre os artigos 179, XXXIII – que estabelecia o direito de cidadãos brasileiros terem ensino público – e o 6º – o qual informava quem eram as pessoas reconhecidamente qualificadas como cidadãs brasileiras:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes.

 

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros

  1. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.
  2. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio.

III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil.

  1. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.
  2. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.

Vale ressaltar que apenas em 1854, com o decreto 1.331-A de 17 de fevereiro, houve um regulamento que previsse a forma de acesso de negros ao ensino formal, porém, como antecipado, os obstáculos eram quase intransponíveis aos não escravos:

Art. 69. Não serão admittidos á matricula, nem poderão frequentar as escolas:

  • 1º Os meninos que padecerem molestias contagiosas.
  • 2º Os que não tiverem sido vaccinados.
  • 3º Os escravos.

Art. 85. Não serão admittidos á matricula, nem poderão frequentar o Collegio, os individuos nas condições do Art. 69.

Diante desse quadro, apesar de a história oficial pintar um belo caminho de melhoria das condições do negro no século XIX, vemos que o Estado lhe negava os direitos básicos de propriedade e de acesso à educação.

Um pouco mais além na nossa linha do tempo, o Brasil viu na guerra do Paraguai uma oportunidade de abusar e violentar a população negra no país. Das mais variadas formas, o exército brasileiro foi composto por um alto número de negros, com a promessa de que se obteria a liberdade e terras, na parte voluntária.

Entretanto, também havia compulsoriedade no alistamento. Quando um senhor de escravos era chamado para lutar, barganhava entregando escravos para o seu lugar. Os negros eram colocados na frente de batalha sem treinamento adequado e o destino foi praticamente um só.

Esse evento lembra uma crítica feita por um filme de comédia em que a ideia era mais ou menos a mesma, quando as tropas adotaram a denominada “operação escudo humano”:

Uma hipótese que virou cena de filme de comédia[3]por parecer tão absurda, guardadas as devidas proporções, faz parte de mais um capítulo lamentável de nossa história.

Após a guerra, o Brasil passa pelas três leis mais famosas da escalada à liberdade da população negra no país: Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários e Lei Áurea.

A Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, foi o ato governamental que declarou livres as crianças nascidas de mães escravas.

Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.

Mas como conceder a liberdade a alguém poderia ser ruim?

Segundo a lei, quando nascia o filho de escravos, ele ficava com a mãe (e sob o comando do senhor de escravos) até os oito anos de idade. A partir desse momento, o proprietário da mãe decidia se entregaria a criança ao Estado, recebendo uma indenização pecuniária, ou se ela trabalharia na fazenda até completar 21 anos.

Neste ponto, convido o leitor a responder as seguintes perguntas: que liberdade era essa, se a “criança livre” não era livre para ficar com a sua família? O que será que essa criança fazia até completar oito anos? Qual o destino dela ao ser entregue ao Estado?

Indo além, o que se deve extrair do §5º do artigo 1º da referida lei, segundo a qual se determinava que até os 12 anos, caso a mãe fosse vendida, a criança iria junto? Não é difícil vislumbrar que a criança, apesar de ser formalmente livre, ainda tinha valor de venda, afinal ela trabalharia na próxima fazenda, de graça, até os 21 anos.

No mesmo sentido de implantar uma ilusão de ajudar os negros, foi criada a chamada Lei dos Sexagenários, em 28 de setembro de 1885, que tinha como objetivo “regular a extinção gradual do elemento servil”. A lei criou vários “incentivos” para fomentar a libertação dos escravos na época.

Interessante notar manifestação oficial do Senado Federal celebrando o citado diploma normativo como uma grande vitória:

A medida resultou de uma intensa luta política travada entre os parlamentares e foi uma resposta das instituições e das elites brasileiras ao clamor pela abolição da escravatura que tomava as ruas e ameaçava comprometer a ordem social, política e econômica.

Coube à Lei dos Sexagenários manter a discussão sobre o fim da escravidão acesa e conceder tempo para uma solução negociada que pusesse fim ao sistema escravagista de forma não violenta, como aconteceu nos Estados Unidos com a Guerra de Secessão (1861-1865).

A lei foi aprovada após intenso debate na Assembleia Geral, como era chamado o Congresso Nacional à época.

[…]

Mas a aprovação da lei foi de extrema importância do ponto de vista da luta política que se travava à época entre abolicionistas e escravagistas na sociedade e nas instituições do Império.[4]

O que se esquece de contar a respeito dessa lei?

Art. 3°. § 10. São libertos os escravos de 60 annos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indemnização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos.

 

  • 13. Todos os libertos maiores de 60 annos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimental-os, vestil-os, e tratal-os em suas molestias, usufruindo os serviços compativeis com as forças delles, salvo si preferirem obter em outra parte os meios de subsistencia, e os Juizes de Orphãos os julgarem capazes de o fazer.

Em primeiro lugar, ninguém falou que o escravo que completasse 60 anos continuaria a trabalhar por três anos para o seu senhor, de forma a pagar por sua alforria. Tampouco dizem que após esse período obrigatório, ele continuaria trabalhando em troca de prato de comida e moradia.

E o questionamento continua inalterado: o que mudou com o advento dessa lei?

Ainda há outro ponto de suma importância a ser abordado nesse aspecto, haja vista a necessidade de saber o raio de incidência das benesses previstas em lei. Em uma época na qual a expectativa de vida não passava dos 33 anos[5]– entre brancos e negros -, quantos escravos conseguiam chegar aos 60 anos para serem contemplados por essa concessão de liberdade?

É chegado o momento de analisar a festejada Lei Áurea, quando se declarou extinta a escravidão no Brazil.

A série de atos complexos que culminaram na ausência de motivos para se comemorar o dia 13 de maio se completa com outros dados estatísticos e na soma de todos os fatores já expostos no texto.

Nesse ponto, é preciso abrir um parêntese de ordem organizacional. Muitos dos documentos que poderiam e deveriam ajudar a reconstrução dessa narrativa foram destruídos a mando também do Estado.

Em 14 de dezembro de 1890, o ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, assinou um despacho ordenando a destruição de documentos referentes à escravidão.

Considerando que a nação brazileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão – instituição funestíssima que por tantos annos paralysou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosphera moral.

[…]

Considerando que a república está obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que a abolição do elemento servil entraram na comunhão brazileira.[6]

Na realidade, a intenção do ex-ministro da Fazenda era evitar a formação de provas aptas a estabelecer um dever de indenizar os ex-senhores de escravos por parte do Estado, diante da crise econômica que assolava o país naquela época.

A observação se faz necessária, na medida em que há muita imprecisão em certos dados disponíveis em várias fontes espalhadas em bibliografias e que certos marcos temporais apenas permitem que se faça análise aproximada, mas nem por isso, descoladas da realidade.

Portanto, para analisar a sociedade brasileira de 1888, o único Censo oficial disponível utilizando especificações e descrição da população negra e escrava foi o de 1872.[7]Nessa pesquisa, é possível identificar que a população negra da época (pretos e pardos) chegava a 5.762.134 pessoas. Desse total, havia ainda 1.510.806 escravos, ou seja, 26,22% dos negros ainda mantinham a chamada relação servil.

É importante trazer esses números, porque, ao contrário do estabelecido pelo senso comum, quando a Lei Áurea foi aprovada, a grande maioria dos negros no Brasil já estava livre por um esforço fora do Estado, através da compra da própria alforria ou por auxílio de grupos abolicionistas.

Esse panorama mostra que a Lei Áurea teve pouco impacto na melhoria das condições de vida dos negros, ainda mais evidente quando lembramos a completa ausência de meios para estudar e nem para obter propriedade dos negros recém-libertos. Foram milhões de pessoas deixadas à própria sorte.

Para arrematar e completar todos os pontos de bloqueio do acesso ao desenvolvimento socioeconômico da população negra, em 28 de julho de 1890, foi editado um decreto com o objetivo de incentivar a vinda de imigrantes ao Brasil.

Essa é mais uma página interessante e triste de nossa história, porque não se tratava de qualquer imigrante, visto que os de origem africana, logo no artigo 1º do decreto, estavam expressamente excluídos da sua incidência, expondo uma verdadeira política de branqueamento da sociedade brasileira.

Dentre os inúmeros incentivos introduzidos pelo governo brasileiro no sistema projetado, destaco dois: (i) a passagem de vinda era custeada pelo Brasil e (ii) era entregue um título de propriedade de terra ao imigrante que aceitasse vir ao país trabalhar.

Art. 5º Sómente terão passagem integral ou reduzida, por conta do Governo Federal:

1º As familias de agricultores, limitados aos respectivos chefes, ou aos seus ascendentes os individuos maiores de 50 annos;

2º Os varões solteiros maiores de 18 annos e menores de 50, uma vez que sejam trabalhadores agricolas;

3º Os operarios de artes mecanicas ou industriaes, artezãos e os individuos que se destinarem ao serviço domestico, cujas idades se acharem comprehendidas entre os limites do paragrapho precedente.

Os individuos enfermos ou com defeitos physicos, sómente terão passagem gratuita, si pertencerem a alguma familia que tenha pelo menos duas pessoas válidas.

Art. 26. O immigrante receberá, no acto do seu estabelecimento, um titulo provisorio de sua propriedade, no qual serão lançados, com o preço do lote, os adiantamentos que receber.

Neste mesmo titulo serão igualmente registrados os pagamentos que forem effectuados.

Logo que terminarem os pagamentos devidos pelo immigrante, será este titulo trocado por outro de caracter definitivo, onde lhe seja dada plena quitação e se achem indicadas todas as vantagens estabelecidas no citado decreto n. 451 B, de 31 de maio.

Ora, enquanto os povos não africanos eram convidados a vir para o Brasil, garantindo-lhes passagem, trabalho e casa, os quase seis milhões de negros foram proibidos pelo Estado brasileiro de ter um lugar para morar e para estudar.

Logo, não é preciso muito esforço para concluir quem ficou com os postos de trabalho disponíveis à época e a quem foi permitido prosperar social e economicamente após o dia 13 de maio de 1888. E, por conseguinte, elas (aquelas perguntas repetitivas) aparecem novamente: que tipo de liberdade é essa entregue aos negros? O que resta a se comemorar com essa data?

Infelizmente, não há o que comemorar. Os fatos mostram a violência estatal constante contra a população negra, utilizando a roupa benevolente da concessão de liberdade, mas que castigava de modo visceral milhões de pessoas, com efeitos perceptíveis ainda nos dias atuais, nas suas respectivas gerações.

Os exemplos expostos obrigam a questionar o papel do Estado na sociedade e na vida dos menos favorecidos, a estudar e procurar entender como políticas públicas com justificativas altruístas e desejáveis podem trazer consigo um viés nefasto e arrasador, com consequências destruidoras para um número incontável de vítimas.

Portanto, quando se fala da atualidade das fake news, é preciso atentar que nós negros convivemos há séculos com esse tipo de discurso, que gera tamanha desinformação, obriga a nos afastarmos de nossas origens e impede de conhecermos a nossa história.

 

PARTE II – O NEGRO NO BRASIL DE HOJE

 

A resolução nº 68/237[8]editada na Assembleia Geral da ONU de 23 de dezembro de 2013 instituiu a Década Internacional dos Afrodescendentes, com o tema “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Esse período compreenderá 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2024[9].

O principal objetivo da Década Internacional consiste em promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de afrodescendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos[10].

O Brasil aderiu a essa campanha, celebrando o período a partir do dia 22/07/2015.

Tal iniciativa se dá em decorrência da evidente necessidade de reduzir a extrema desigualdade de acesso do povo negro ao exercício de seus direitos fundamentais e aos serviços públicos[11].

O quadro de representatividade e visibilidade dessa parcela da população também no que consistente no acesso à justiça é algo que vem aumentando, mas está muito aquém do desejável. Nesse sentido, cumpre anotar alguns dos objetivos traçados pela ONU para aprimoramento do atendimento ao povo negro[12]:

  • Introduzindo medidas para garantir igualdade perante a lei, especialmente no desfrute do direito ao tratamento igual perante tribunais e todos os outros órgãos jurídico-administrativos;
  • Projetando, implementando e aplicando medidas eficazes para a eliminação do fenômeno popularmente conhecido como “perfil racial” (“racial profiling”);
  • Garantindo que afrodescendentes tenham total acesso a proteção e recursos eficazes perante os tribunais nacionais competentes e outras instituições do Estado contra quaisquer atos de discriminação racial, e o direito de exigir destes tribunais reparação ou indenização justa e adequada por qualquer dano sofrido em resultado de tal discriminação;
  • Facilitando o acesso à justiça para afrodescendentes que foram vítimas de racismo fornecendo as informações jurídicas necessárias sobre seus direitos e prestando assistência jurídica quando apropriado;
  • Assegurando que afrodescendentes, como todas as outras pessoas, desfrutem de todas as garantias de um julgamento justo e da igualdade perante a lei tal como consagrado nos instrumentos internacionais de direitos humanos relevantes, e especificamente o direito à presunção de inocência, o direito à assistência de um advogado e um intérprete, o direito a um tribunal independente e imparcial, garantias de justiça e todos os direitos garantidos aos presos;
  • Convocando a todos os Estados interessados a tomar medidas apropriadas e efetivas para conter e reverter as duradouras consequências destas práticas, tendo suas obrigações morais em consideração.

Para que as medidas desenhadas sejam implementadas, é necessário o reconhecimento da existência de um fato de nossa realidade cotidiana, contida na afirmação de que o racismo existe no Brasil, dentro dos próprios braços estatais.

Se no Brasil Império restou plenamente demonstrado que as leis podem ter efeitos nefastos, cabe procurar saber se a situação foi alterada após 131 anos, pelos menos nesse aspecto.

Dentre tantas escolhas disponíveis, destaco a Lei Afonso Arinos, de 03 de julho de 1951: a primeira lei cujo fundamento era evitar a prática de racismo no país, qualificando-a como contravenção penal.

Mantendo a dinâmica de contar a história por trás da história, é bom atentar para o fato de que a lei foi criada, após uma bailarina mundialmente famosa e negra, chamada Katherine Dunham[13], ter sido impedida de se hospedar em um hotel de São Paulo, durante uma turnê no Brasil.

Foi preciso de um escândalo internacional para que se elaborasse uma lei definindo como ilícita a prática de racismo. O efeito prático de sua aprovação é imaginável pelo caro leitor: enquanto vigia em nosso ordenamento, não há registro de qualquer condenação criminal com base na sua previsão.

Caminhando em nossa linha do tempo, chegamos à dicotomia entre o crime de racismo, previsto na lei 7716 de 05 de janeiro de 1989, e a injúria racial, que consta no artigo 140, § 3° do Código Penal.

A lei 7716 disciplina “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Por sua vez, a nossa Constituição atual determina que os crimes previstos nessa lei não são passíveis de fiança ou prescrição.[14]Isso quer dizer que o crime de racismo foi classificado como tão bárbaro que o Estado nunca perderá a possibilidade de punir o autor do delito.

Em 13 de maio de 1997, foi aprovada a Lei 9459, alterando “os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940”. Essa alteração criou o §3° do artigo 140 do Código Penal, criando o crime de injúria racial.

O nascimento do novo tipo penal é mais uma demonstração em que o Estado concede com uma mão e retira com outra.

Mas, antes de poder vislumbrar a razão dessa crítica, é preciso trazer as principais diferenças entre um crime e outro.

Basicamente, na injúria racial, o autor do crime ofende uma pessoa por sua “condição de raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.

Já no crime de racismo, as ações que configuram delito têm uma natureza de impedir a pessoa de exercer um direito de liberdade, como usar transportes públicos, ser atendido em restaurantes, por exemplo. Entretanto, essas ações são de difícil comprovação, o que gera um esvaziamento da proteção pretendida. E a única exceção está no artigo 20, segundo o qual é crime de racismo “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Daí surge uma confusão com art. 140, §3º do Código Penal, que prevê como ato ilícito penal “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.

Injuriar é ofender, insultar. Quando somos chamados de macacos, qual crime foi cometido? Certamente há ofensa direta ao sujeito por pertencer à etnia negra, mas também é indubitável a prática de discriminação. A pessoa pode cometer injúria racial e racismo ao mesmo tempo?

Para sanar essa questão, buscou-se dar um novo sentido à proteção da lei 7716/89, coletivizando-a. Portanto, quando a ofensa for realizada contra um grupo indeterminado, haverá o crime de racismo.

Todas essas mudanças com a criação do crime de injúria racial geram diferenças muito relevantes, na medida em que a injúria admite pagamento de fiança e o Estado tem até oito anos para punir o autor do delito.

Por conseguinte, a alteração trazida pela lei 9459/97 esvaziou quase que completamente o estabelecido na lei 7716/89.

O curioso dessa história, porém, está no processo de deliberação da Lei 9459/97, porque o seu projeto, de n° 1240-A de 1995, tinha a finalidade de alterar somente a lei 7716/89, não havendo qualquer explicação quanto à necessidade ou vontade de se alterar o Código Penal. Esse ato inexplicável simplesmente ocorreu e desconfigurou completamente o sistema desenhado previamente, como se observa na leitura dos trechos do referido projeto.

Infelizmente, os objetivos traçados foram sobrepujados sem qualquer justificativa e criou-se a situação exata que se queria evitar, de impunidade com classificação de injúria racial e não crime de racismo.[15]

Outro marco que até os dias atuais gera debate significativo é o Dia Nacional da Consciência Negra. Seu processo legislativo foi iniciado com a aprovação de dois projetos de lei do Senado Federal, cujas propostas eram de celebrar o Dia da Consciência Negra e reconhecê-la como feriado nacional.

Quando remetidos à Câmara dos Deputados, os projetos foram unificados e a proposta passou a ter a seguinte descrição em setembro de 2005:

Art. 1º Fica instituído o “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”, a ser comemorado, anualmente, no dia 20 de novembro, data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares.

Art. 2º O art. 1º da Lei nº 662, de 6 de abril de 1949, que “Declara Feriados Nacionais os Dias 1º de Janeiro, 1º de Maio, 7 de Setembro, 15 de Novembro e 25 de Dezembro”, com redação dada pela Lei 10.607 de 19 de dezembro de 2002, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1º São feriados nacionais os dias 1o de janeiro, 21 de abril, 1o de maio, 7 de setembro, 2 de novembro, 15 de novembro, 20 de novembro e 25 de dezembro.” (NR)

E essa forma se manteve até o dia 17/03/2009, quando, na reunião deliberativa da CCJ, foi alterada a redação do projeto, também sem qualquer deliberação ou justificativa.

Nos documentos disponíveis para pesquisa, apenas há um voto vencido durante a tramitação do projeto na câmara, do deputado Régis de Oliveira, alegando o risco comprometimento das indústrias e atividades comerciais do país com a criação de mais um feriado.

Apesar de uma atuação furtiva na Câmara dos Deputados, vários municípios e estados da federação tornaram o dia 20 de novembro em feriado local. Em resposta a esse “contragolpe”, as associações de comerciantes e industriais foram ao Judiciário alegando que essas leis locais violavam a Constituição. Felizmente, o ministro Alexandre de Moraes julgou extinta a ação por entender que a Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC) – autora da ação – não poderia questionar a escolha de um estado-membro da federação:

“O cerne do diploma legislativo sob ataque é celebrar valores históricos e culturais reputados relevantes pelo legislador fluminense”, afirmou. “A importância histórica e cultural da data celebrada como feriado (aliás também em muitos outros estados-membros, tais como Alagoas, Amapá, Mato Grosso e Rio Grande do Sul, e em inúmeros municípios do país) sobrepõe-se aos efeitos secundários da norma verificados no campo econômico”. (STF, ADI 4091, relator: ministro Alexandre de Moraes, p. 11/09/2017)

Ainda que conquistada essa vitória na mais alta Corte do país, a luta nos tribunais locais segue, porquanto ainda há bastante alternância de posicionamentos sobre o tema.

É importante trazer ao debate também um aspecto legislativo de profundo impacto na vida da sociedade, que está ligado à violência policial contra a população negra: os autos de resistência, cuja previsão se encontra no artigo 292 do Código de Processo Penal:

Art. 292.  Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará autosubscrito também por duas testemunhas.

As manchetes acima representam os milhares de exemplos que ocorrem no dia-a-dia em que o braço armado do Estado tem um salvo conduto legalmente estabelecido em nosso sistema criminal.

Conforme exposto no artigo 292 do Código de Processo Penal, havendo resistência à prisão, o policial é permitido a envidar os esforços que entender necessários para suplantá-la.

O problema no caso está no momento posterior à ação, que na maioria dos casos leva à morte de algum dos envolvidos, com um registro precário do ocorrido, com base em apenas uma declaração reduzida a termo por quem participou da operação policial, sem qualquer investigação posterior.[16]

A narrativa padrão dos autos de resistência, segundo Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro é a seguinte:

“Os termos de declaração diziam que os policiais estavam em patrulhamento de rotina ou em operação, em localidade dominada por grupos armados, foram alvejados por tiros e, então, revidaram a ‘injusta agressão’. Após cessarem os disparos, teriam encontrado um ou mais ‘elementos’ baleados ao chão, geralmente com armas e drogas por perto, e lhes prestado imediato socorro, conduzindo-os ao hospital. Em quase todos os ‘autos de resistência’ é relatado que as vítimas morreram no caminho para o hospital, e os boletins de atendimento médico posteriormente atestam que a vítima deu entrada no hospital já morta”.

Os números, quando postos para enfrentamento, são assombrosos. No período compreendido entre janeiro de 2016 e março de 2017, no Estado do Rio de Janeiro, o gráfico a seguir demonstra o panorama das mortes causadas por policiais militares a partir de um critério de etnia.[17]

Se por um lado há uma maioria equilibrada entre negros e brancos na sociedade em geral, por outro, há uma discrepância absurda em se tratando de quem sofre a violência vinda da parte cuja missão é proteger.

A fim de tentar combater esse tipo de violência, no Congresso existe um projeto de lei n° 239/2016, cuja finalidade é abolir os autos de resistência e modificar profundamente a forma como se investigam as mortes ocorridas em operações policiais.

 

 

 

 

 

Artigo 292

 

•       Usar apenas moderadamentedos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência;

 

•       Obrigatória a instauração de inquérito policial, devendo a autoridade cuidar da preservação do que possa interessar à perícia.

 

 

Artigo 169

 

Estabelecerá que o laudo de exame de local deverá conter fotografias, desenhos ou esquemas elucidativos.

 

 

 

Artigos

 

162

 

164

 

165

 

•       Estabelecerão que o laudo necroscópico deverá conter fotografias, desenhos ou esquemas elucidativos de lesões externas.

 

•       Lesão interna será obrigatório exame quando a violência for policial.

 

 

Artigos

 

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162, § 5º

 

•       Vítima ou representante poderá indicar assistente técnico;

 

•       Vedarão o acompanhamento dos exames de corpo de delito e das autópsias por pessoas estranhas ao quadro de peritos e auxiliares.

 

Um dos capítulos da mais alta importância da história negra atual é, sem dúvida alguma, a criação das cotas raciais, primeiramente nas universidades públicas e, posteriormente, no serviço público.

O STF nos dois casos, por unanimidade, considerou constitucionais as cotas raciais. Mas, apesar da unidade de nossa Suprema Corte, o entendimento é polêmico e ainda divide opiniões.

Como se trata de um tema complexo, que se desdobra para dentro dos tribunais, tomarei a liberdade de adentrar um pouco mais no mérito do caso.

Entretanto, antes de dissecar os principais pontos discutidos, todavia, é preciso entender os motivos pelos quais houve a propositura da ADPF 186 e da ADC 41.

No tocante à ADPF 186, o DEM questionou a validade da criação de cotas em comparação ao princípio da igualdade. Vale dizer, se a discriminação propositalmente orquestrada pelas universidades era uma forma de injustiça.

Já a ADC 41 tem um aspecto muito interessante, haja vista que marcou o momento em que a comunidade negra se organizou para tomar as rédeas da situação e combater os casos de fraudes ao sistema de cotas, os quais foram referendados por juízes de 1ª instância, enfraquecendo, pois, a efetividade da medida, como no seguinte caso paradigmático:

A Justiça Federal em Alagoas (JFAL) concedeu liminar determinando que a União Federal incluísse um candidato constante na lista de aprovados na primeira etapa do concurso público para Agente de Polícia Federal (Edital n.º 55/2014), nas cotas para candidatos negros, convocando-o assim para a etapa Curso de Formação Profissional do referido certame. O candidato foi desclassificado do concurso pelo fato de a banca examinadora entender que ele é branco e, portanto, não cumpria os requisitos mínimos para preencher as vagas destinadas aos afrodescendentes.

É possível extrair dos fundamentos expostos pelo magistrado que, diante da impossibilidade científica de se identificar na prática a raça da pessoa, não seria lícito ao Estado formar uma comissão específica para verificação de pertencimento do candidato a uma etnia específica[18].

Outra fonte de grande indignação foi a prolação de uma decisão do STJ, que consistiu em determinar a inscrição de candidata que havia sido excluída do concurso também por fraude, conforme ementa a seguir:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CANDIDATA APROVADA NAS VAGAS DESTINADAS AOS NEGROS E PARDOS. CRITÉRIO DA AUTODECLARAÇÃO. PREVISÃO EDITALÍCIA. VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

  1. A questão em debate cinge-se à verificação da suposta ilegalidade do ato administrativo estadual gaúcho que determinou a nulidade da inscrição da recorrente no concurso público para o cargo de Oficial de Controle Externo, Classe II, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, conforme Edital 002/2013, em face da ausência de comprovação da sua afrodescendência declarada para fins de concorrência nas vagas específicas para negros e pardos.
  2. In casu, a recorrente teve a inscrição no concurso cancelada ao fundamento de que não preenchia os requisitos necessários a concorrer às vagas destinadas aos negros e pardos, uma vez que, apesar de ser parda, não teria comprovado ser filha de pai ou mãe negra, não podendo sua cor de pele ter advindo de seus avós ou outro parente ancestral.
  3. Os requisitos analisados pela Comissão não guardam relação com o previsto no Edital e sequer com a Lei Gaúcha 14.147/2012, uma vez que foram estabelecidos de forma aberta e irrestrita por seus integrantes que, inclusive, destacaram que para os efeitos aqui pretendidos, há que ser considerado pardo o filho de mãe negra e pai branco (ou vice-versa), condição que não possui a candidata (fls. 97).

[…]

  1. Nesse contexto, importa salientar que se o edital estabelece que a simples declaração habilita o candidato a concorrer nas vagas destinadas a negros e pardos, e não fixa os critérios para aferição desta condição, não pode a Administração, posteriormente, sem respaldo legal ou no edital do certame, estabelecer novos critérios ou exigências adicionais, sob pena de afronta ao princípio da vinculação ao edital, além de se tratar de criteriologia arbitrária, preconcebida e tendente a produzir o resultado previamente escolhido.

[…]

  1. Dessa forma, mostra-se líquido e certo o direito da recorrida em ter anulado o ato que determinou o cancelamento de sua inscrição na lista específica para negros e pardos, bem como para restabelecer os efeitos de sua nomeação para que, preenchidos os demais requisitos legais, tome posse no cargo de Oficial de Controle Externo, Classe II, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. (AgRg no RMS 48805. 1ª Turma. Rel. Napoleão Nunes Maia, j. 31/05/2017)

 

Daí a importância de o STF ter uma decisão que pacifique o assunto de uma vez. Primeiramente, o ministro Barroso ressaltou uma questão interessante: que o Direito à igualdade tem uma perspectiva de ser reconhecido como sujeito de direitos, ou seja, de ter acesso aos mesmos serviços e tratamento que os demais membros da sociedade, o que, observando os nossos dados empíricos, evidentemente não temos. Afinal, o Brasil tem 53% de negros e 46,3% de brancos em sua população.

Todavia, quando observamos as faixas de renda, esse equilíbrio numérico some completamente.

Como demonstrado no Programa Brasil sem Miséria, na zona classificada como extremamente pobre, evidencia-se que 71% é composta por negros, traduzidos em 5.651.071 (cinco milhões, seiscentos e cinquenta e um mil e setenta e um) de pessoas. Ainda na base, mas subindo um degrau, considerada pobre, o correspondente é de 75% negros, ou 7.357.054 (sete milhões, trezentos e cinquenta e sete mil e cinquenta e quatro) pessoas.

Seguindo o mesmo parâmetro, observa-se ainda que uma pessoa branca ganha, em média, R$ 1.252,80 (mil duzentos e cinquenta e dois reais e oitenta centavos), equivalendo a quase o dobro de uma pessoa negra, que aufere R$ 664,24 (seiscentos e sessenta e quatro reais e vinte e quatro centavos).

No critério de escolaridade, o desequilíbrio se mantém da mesma forma, quando o índice de analfabetismo de pessoas brancas é de 5,2% contra 11,5% de pessoas negras.

No nível superior, em 1997, apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. Após algumas universidades estaduais e federais aderirem ao sistema de cotas, os números apresentados começaram a apresentar melhoras. Subiu de 2,2% para 11% a porcentagem de pardos que cursam ou concluíram um curso superior no Brasil; e de 1,8% para 8,8% de negros. (Ministério da Educação/2013)

Apesar de contar com apenas 0,3% da população, os casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana chegam a 71% das denúncias, de acordo com o o Disque 100 (do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, Juventude e dos Direitos Humanos), gerando um aumento de 236 vezes em representatividade em relação às demais religiões.

Por último, um fato assustador: segundo o Ministério da Saúde, somente no ano de 2014, no Brasil, 44.582 negros morreram por homicídio. Isso quer dizer que todos os dias morreram 123 negros, correspondendo a 2,4 vezes mais do que brancos, demonstrando um crescente em relação aos demais anos em que a taxa de mortalidade era de 34,7 em 2011, 36,2 em 2012 e 36,4 em 2013.

Um segundo ponto foi levantado na ADC 41 (lei de cotas em concurso público), que merece registro: se os negros já gozam de uma vantagem no vestibular, não seria um benefício duplo reservar vagas nos concursos públicos? Sobre essa reclamação, também não havia como lograr êxito, tendo em vista que, segundo estudo realizado pelo Ministério da Previdência, no serviço público brasileiro existem apenas 30% de servidores negros do total de 519.369 servidores públicos civis do Poder Executivo federal que declararam a cor ou raça no Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (SIAPE).

Com um olhar mais atento aos principais cargos jurídicos, a situação é ainda mais gritante, contando com apenas 1,4% de juízes pretos e no MP/SP com apenas 3% de promotores negros.

Complementando o panorama, em julgamento sobre a reserva de cotas no MP, o CNMP teve acesso aos seguintes números:

O Ministério Público do Rio de Janeiro declarou que, entre 910 promotores, apenas quatro são negros. O MP do Distrito Federal alegou ter dez negros entre seus 370 promotores. O MP de Minas Gerais afirmou possuir 87 promotores negros num universo de 1003. Chegando até mesmo ter locais onde não há nenhum promotor negro, como no caso do Rio Grande do Sul onde, de acordo com o declarado pelo MP-RS, não há nenhum promotor negro entre os seus 700 promotores”.

Não custa ressaltar que no mercado de trabalho, a sorte também não sorri à população negra, que conta com 80% dos desempregados do país[19].

A Suprema Corte dos Estados Unidos enfrentou o tema, no concernente ao ingresso nas universidades, e entendeu pela constitucionalidade das cotas, por maioria, em 23/06/2016.

OJustice Anthony Kennedy, em seu voto, considerou ser plenamente possível a universidade poder“instituir um programa de admissões racialmente consciente como um meio de obter os benefícios educacionais decorrentes da diversidade do corpo discente”.

Prossegue ao afirmar que “a diversidade promove o entendimento inter-racial, ajuda a dissolver estereótipos raciais e permite aos estudantes entender melhor as pessoas de raças diferentes. Além disso, prepara os estudantes para uma força de trabalho e para uma sociedade cada vez mais diversa e forma líderes que representam as raças com maior legitimidade aos olhos dos cidadãos”.[20]

Thomas Sowell, em seu trabalho intitulado “Ação afirmativa pelo mundo: um estudo empírico”, atenta para os perigos de se implementar uma ação afirmativa observando-se tão somente seus fundamentos filosóficos e morais, sem atentar para os resultados práticos de benefícios e custos, o que converge para o entendimento dos críticos das cotas raciais em concurso público.

Mas, no que concerne à eficácia das cotas raciais a fim de reduzir a miséria da população, a experiência mostra que a reserva de vagas não aumenta o custo para o Estado, porquanto a previsão de vagas disponíveis para concorrência é anterior à sua reserva étnica.

Com relação ao desempenho acadêmico, há pesquisas que demonstram como alunos cotistas se mostram acima da média. Estudos realizados pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pela Universidade de Campinas (Unicamp) e pela Universidade Federal de Minas Gerais mostraram que o desempenho médio dos alunos que entraram na faculdade graças ao sistema de cotas é superior ao resultado alcançado pelos demais estudantes.

O primeiro levantamento sobre o tema, feito na Uerj em 2003, indicou que 49% dos cotistas foram aprovados em todas as disciplinas no primeiro semestre do ano, contra 47% dos estudantes que ingressaram pelo sistema regular.

A Unicamp, ao avaliar o desempenho dos alunos no ano de 2005, constatou que a média dos cotistas foi melhor que a dos demais colegas em 31 dos 56 cursos. Entre os cursos que os cotistas se destacaram estava o de medicina, um dos mais concorridos – a média dos que vieram de escola pública ficou em 7,9; a dos demais foi de 7,6.

Na UFMG, no curso de história, por exemplo, a média das notas dos cotistas é 89% maior do que quem entrou pela ampla concorrência. Em ciências da computação, a nota deles é 58,14% maior. Na engenharia de controle e automação, 52,94% e, em medicina, a nota dos cotistas é 50% melhor.

No tocante ao concurso público, a preocupação com rendimento sequer deveria existir, na medida em que todos os candidatos aprovados com média mínima prevista no edital têm plenas condições de assumir e exercer os cargos públicos.

Um ponto sempre alvo de críticas é justamente de como distribuir as vagas aos candidatos cotistas, já que a Lei determina que a autodeclaração é a figura legítima para o caso.

Todavia, sem mecanismos de controle, o sistema tem sido objeto de diversas fraudes, evitando-se a efetivação de uma medida tão louvável.

A Comissão formada na UFPel para investigar estudantes do curso de Medicina denunciados por fraude no sistema de cotas raciais manteve, após os recursos, o indeferimento das autodeclarações de raça dos 24 acadêmicos. Com isso, a Reitoria, em função do não reconhecimento da condição de cotistas, determinou o cancelamento das matrículas e o desligamento do curso dos alunos.[21]

O juiz federal Renato Coelho Borelli, da 20ª Vara de Brasília, afirmou que o Instituto Rio Branco, órgão ligado ao Itamaraty e responsável pelo concurso, “foi omisso em não criar, previamente em edital, mecanismo de verificação da autodeclaração de candidatos que se intitularem negros ou pardos” e, com isso, decidiu liminarmente por suspender o concurso à carreira de diplomata em 2015.[22]

A Universidade Federal Fluminense desclassificou 113 candidatos por fraude em cotas.[23]

Portanto, é preciso ter o mesmo critério que foi adotado na ADPF 186, por coerência, constando no voto do ministro relator Ricardo Lewandowski:

A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença.

Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (…) um grau de consistência entre auto identificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo.

Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (…), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (I) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação): (2) o requerimento de declarações assinadas: (3) o uso de entrevistas (…): (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoiden1ificação pelo candidato.

[…]

A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (…). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância, de lima classificação por terceiros: (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência: (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações:

pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto: (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos “.

É preciso perceber que existe lei concedendo benefício e que, além dela, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu todos os requisitos para sua aplicação, de acordo com o nosso sistema jurídico vigente.

No entanto, contrariando todas as legítimas expectativas, o próprio Estado insiste em se opor à concretização de um direito legitimamente reconhecido. Note-se que não se trata de concordar ou não com a situação, mas sim de respeito às regras do jogo – regras essas que são postas à prova até o limite, mesmo com todos os fatores legalmente favoráveis.

Por fim, há ainda um último aspecto a lamentar: a atrofia do Estatuto da Igualdade Racial, Lei n° 12.880 de 2010.

No seu artigo 2º, o diploma legal estabelece que “é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais”.

O art. 4°, por sua vez, materializa os objetivos traçados pelo artigo supracitado, estabelecendo medidas concretas a serem seguidas, especificamente nos seguintes dispositivos:

Art. 4o  A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:

II – adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;

III – modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;

V – eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;

VII – implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.

Parágrafo único.  Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País.

No Capítulo IV do referido diploma legal, encontram-se diretrizes para inserção do negro no mercado de trabalho, conforme se verifica a seguir:

Art. 39.  O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor públicoe o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.

  • 2º As ações visando a promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos.

A sua exposição de motivos demonstra a necessidade de existir um sistema legal devidamente estruturado, de modo a se tentar diminuir as desigualdades ilegítimas e desproporcionais incidentes em parcela significativa da população:

O Brasil tornou-se uma das maiores economias mundiais por meio do trabalho de brancos, índios e negros. Por isso, nós negros queremos ver nossa história reconhecida, registrada e respeitada!

Queremos políticas públicas e privadas que abram espaços para a nossa gente tão sofrida.

Revolta-nos ver que nossos jovens, ainda hoje, figuram nas listas dos assassinados, dos marginalizados. São maioria nas prisões, entre os desempregados e entre aqueles que dependem do salário mínimo.

No ano passado, institutos de pesquisas vinculados ao governo federal mostraram que os negros são os mais pobres, os menos escolarizados, são os que recebem os menores salários quando empregados e constituem a maioria esmagadora dos trabalhadores lançados na informalidade e no desemprego.

Dados do IPEA nos mostram que os diferenciais de pobreza entre negros e brancos não diminuíram. A proporção de negros abaixo da linha de pobreza é de 50%, enquanto a de brancos fica em 25%. Isso desde 1995.

O diferencial entre os indigentes – que são os mais pobres entre os pobres-, é ainda mais desfavorável aos negros. Se somos maioria entre os pobres (65%), essa maioria se amplia entre os indigentes (70%). A proporção de negros abaixo da linha de indigência no total da população negra no Brasil também vem mantendo a mesma tendência desde 1995: em torno de 25%, muito superior à proporção de brancos, que fica em aproximadamente 10%.

Os mesmos indicadores mostram que houve melhoras em relação à expectativa de vida, mas a desigualdade entre os índices para negros e brancos persiste. Por exemplo, uma pessoa negra, nascida em 2000 viverá, em média, 5,3 anos menos que uma branca.

Em novembro do ano passado, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) mostrou que, em todas as regiões do país, o salário pago aos afrobrasileiros é menor em relação aos trabalhadores brancos.

Em março de 2005 o IBGE nos dizia o mesmo em sua pesquisa mensal de emprego. Segundo a cor, em seis regiões metropolitanas, a pesquisa do IBGE indicou que as informações sobre os rendimentos do trabalho mostravam que os negros e os pardos recebiam por hora trabalhada menos que os brancos.

Para dar fim a esses indicadores e aos pensamentos discriminatórios, foi que, em conjunto com o Movimento Negro, pensamos o Estatuto. Queremos conquistar os espaços que nos foram negados.

O Estatuto é um conjunto de ações afirmativas, reparatórias e compensatórias. Sabemos que esses tipos de ações devem emergir de todos e de cada um. Devem partir do Governo, do Legislativo, da sociedade como um todo e do ser humano que habita em cada um de nós.

Felizmente isso vem acontecendo. Talvez pudessem ser mais numerosas, mas temos presenciado ações afirmativas. São frentes de luta contra o racismo na educação, no mercado de trabalho, nos meios de comunicação e em diversas outras áreas.

O Estatuto consagra uma série de medidas de proteção, do ponto de vista da segurança da população negra, nos seus artigos 51 a 55 expõe o ponto de maneira muito clara:

Art. 51.  O poder público federal instituirá, na forma da lei e no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo, Ouvidorias Permanentes em Defesa da Igualdade Racial, para receber e encaminhar denúncias de preconceito e discriminação com base em etnia ou cor e acompanhar a implementação de medidas para a promoção da igualdade.

Art. 52.  É assegurado às vítimas de discriminação étnica o acesso aos órgãos de Ouvidoria Permanente, à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, para a garantia do cumprimento de seus direitos.

Parágrafo único.  O Estado assegurará atenção às mulheres negras em situação de violência, garantida a assistência física, psíquica, social e jurídica.

Art. 53.  O Estado adotará medidas especiais para coibir a violência policial incidente sobre a população negra.

Com os números já apresentados de violência policial contra os negros nos dias atuais, os dispositivos presentes no Estatuto parecem piada de mau gosto, ou melhor, a inércia que assola o Poder Público, mesmo diante de questões potencialmente boas, é um verdadeiro escárnio.

Seria plenamente possível realizar progressos em benefício da população negra, com base no Estatuto da Igualdade Racial, mas hoje ainda há diversos setores que se recusam a socorrer quem precisa.

Um infeliz exemplo disso é que Senado e Câmara dos Deputados permanecem silentes quanto ao estabelecimento de regras de inclusão, ao contrário dos Poderes Executivo – através da lei 12.990/14 – e Judiciário – com a Resolução 203/2015. Outro exemplo é que em nenhuma esfera da administração pública do Estado do Espírito Santo há previsão de reserva de vagas para negros também.[24]

Por conseguinte, não é exagero dizer que, mesmo diante de uma lei aparentemente boa, é fácil identificar a intenção das instituições pátrias de esvaziar sua efetividade, em todas as suas esferas, criando obstáculos quase intransponíveis para que se consiga tão somente cumprir o que está previsto nas regras vigentes do jogo.

Um exemplo recentíssimo é de que pela 1ª vez na história do país, o Estado reconhece sua truculência contra a parcela negra de seu povo. A 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo fez uma verdadeira revolução ao reconhecer o óbvio. Importante destacar alguns trechos do voto condutor do acórdão:

Apela o autor (fls. 301/311), alegando que em 5.5.2010, quando tinha 13 anos, foi abordado por policiais militares de forma truculenta, quando a caminho do estádio do Pacaembu para assistir a uma partida entre Corinthians e Flamengo, pela Taça Libertadores. Estava acompanhado do seu pai, Sinvaldo José Firmo, quando três policiais fortemente armados os abordaram. Os PMs estavam na viatura Tático Móvel M-16024 (Placa CWN 5424) e portavam pistolas .40 e uma arma calibre 12. O PM Alexandre Aparecido sacou a pistola .40, caminhou em direção ao autor e, apontado a arma para a sua cabeça, gritou: “pare, tire a mão do bolso, levante para o alto e encoste na parede”.

 

Seu pai então se apresentou como seu genitor e advogado, apresentando sua carteira da OAB. Nesse momento, o PM Eugênio Luiz Viveiros, segurando a arma calibre 12, começou a zombar do pai do autor, dizendo: “você é mesmo ‘advogado? Então, também vai ser revistado”, e, ato contínuo, empurrou-o contra a parede, com as mãos na cabeça, enquanto revistava-o. Ao tentar usar seu celular para pedir ajuda, foi violentamente impedido pelo PM Eugênio, que afirmou, enquanto apontava a arma calibre 12 para a sua cabeça: “pode denunciar para a OAB ou para quem quiser, mas não vai telefonar pra ninguém”. Informado que seu pai trabalhava, à época, como assessor jurídico do então Deputado Estadual José Cândido, o mesmo policial, em tom irônico, perguntou: “o deputado tem imunidade?”. Quando seu pai pediu o nome dos policias, estes se negaram a lhe informar, e ordenaram que ambos saíssem do local.

[…]

Note-se, também, que o autor juntou inúmeras manifestações do seu pai, perante a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB (fls. 37/39), ao CONANDA (fls. 40/42), à Ouvidoria Nacional da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (fls. 43), à Ouvidoria da PM (fl. 44), à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (fls. 74/83), bem como representação ao Ministério Público, movida pelo então Deputado Estadual José Cândido, de quem o pai do autor era assessor à época

(fls. 59/73), e denúncia ao Jornal da Tarde, publicada no periódico (fl. 90).

Não soa plausível que o autor e seu pai fizessem todo esse escarcéu se realmente não tivessem sido vítimas de abordagem abusiva.

[…]

Não bastasse, é importante lembrar que o autor é negro (fls. 29/30) e a Polícia Militar possui um histórico negativo em relação à comunidade negra, como se pode ver da Orientação da PM de 2013, recomendando a abordagem policial de “indivíduos de cor parda e negra[25], levando, inclusive, a um processo movido pela Defensoria do Estado[26]; bem como a recente declaração do Comandante da ROTA, para quem a abordagem nos Jardins tem de ser diferente da periferia[27].

Inevitável notar a necessidade de se persistir a fim de se obter justiça no caso e obviamente isso ocorreu, porque o pai do menino é advogado. Todavia, é preciso reconhecer que todos os dias inúmeros casos como o ora narrado se repetem sem que haja qualquer atitude do poder público no sentido de coibir essa prática nefasta que comprovadamente afeta a vida de nossos jovens, conforme demonstrado no vídeo a seguir:

E desse modo, vários questionamentos surgem a partir daí: e aqueles que não têm pais formados? E aqueles que não têm condições de obter um diagnóstico psicológico adequado? Qual futuro está reservado a esses jovens?

Lamentavelmente, a forma de atuação do Estado com os negros, como é possível perceber, não mudou muito dos tempos do BrazilImpério para os dias atuais.

Assim, mostra-se necessário mudar a roupagem das ações afirmativas, cortando as amarras que ainda nos impedem de concretizar direitos tão legítimos da maioria da população.

Um dos caminhos que venho propondo é modificar a forma como enxergamos o Estatuto da Igualdade Racial, o qual tem sido uma lei de conteúdo abstrato e para o futuro, passando a entendê-lo como uma ordem concreta, direta e imediata a todos os Poderes da República, em todos os níveis da federação, para realizar a integração pretendida por toda nação, no sentido de extinguir o racismo.

Dessa forma, qualquer interpretação na aplicação da lei que restrinja esse sentimento social e constitucional não deve ser levada à frente, tendo em vista que é preciso dar o maior alcance e força possível para que se consiga atingir os objetivos de chegar à igualdade de fato.

É preciso continuar caminhando – devagar e junto, como ensinam os provérbios africanos[28]–, mas que seja de modo mais firme, não aceitando mais benefícios “pra inglês ver” a fim de acabarmos, de uma vez por todas, com o racismo institucional no Brasil.

Dia 13 De Maio: A Maior Fake News De Nossa História – PDF


[1]Doutorando e Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Assessor de Ministro no STF e no TSE, Professor do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB), Consultor Voluntário da Educafro, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC), Consultor da Radio Justiça, Apresentador do Programa “Explicando Direito” e Procurador do Município de Mauá/SP.

[2]Números extraídos do Projeto Viagens: O Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico. Disponível em http://www.slavevoyages.org/. Acessado em 08/05/2018.

[3]South Park. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FqJwD35wWhY. Acessado em 08/05/2018

[4]Senado Federal. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-dos-sexagenarios-completa-130-anos. Acessado em 08/05/2018.

[5]O IBGE aponta que em 1910 a expectativa de vida era de 33,4 anos. Disponível em https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/pdf/29092003estatisticasecxx.pdf. Acessado em 08/05/2018

[6]O Estado de São Paulo, 19/12/1890. Disponível em http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18901219-4745-nac-0002-999-2-not/busca/escravid%C3%A3o. Acessado em 08/05/2018.

[7]Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica – NPHED. Publicação Crítica Do Recenseamento Geral Do Império Do Brasil De 1872. Disponível em http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/wp-content/uploads/2013/02/Relatorio_preliminar_1872_site_nphed.pdf.Acessado em 08/05/2018.

[8]ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution adopted by the General Assembly on 23 December 2013: 68/237 Proclamation of the International Decade for People of African Descent. Disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/68/237

[9]PORTAL BRASIL. ONU aprova Década Internacional de Afrodescendentes. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/01/onu-aprova-decada-internacional-de-afrodescendentes

[10]ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Década Internacional de Afrodescendentes. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/prizes-and-celebrations/2015-2024-international-decade-for-people-of-african-descent/

[11]PORTAL BRASIL. ONU aprova Década Internacional de Afrodescendentes. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gSej12eOxlQ&feature=youtu.be

[12]ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution adopted by the General Assembly on 18 November 2014:69/16 Programme of activities for the implementation of the International Decade for People of African Descent. Disponível em: http://www.decada-afro-onu.org/assets/pdf/A.RES.69.16_IDPAD.pdf

[13]Formada em Antropologia Social pela Universidade de Chicago, era considerada uma das maiores pesquisadoras das danças de origem negra, folclóricas e da antiguidade em geral. Sua companhia de dança, “Katherine Dunham Company”, era composta por negros e especializada neste tipo de dança. Foi ela quem abriu o caminho para as danças negras na Broadway, tendo também coreografado e dançado em Hollywood.

[14]Art. 5°. XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

[15]Diário da Câmara dos Deputados. Disponível em http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD04SET1996.pdf#page=50. Acessado em 09/05/2018.

[16]A Anistia Internacional analisou 220 investigações de homicídios ocorridos na cidade do Rio de Janeiro em 2011, e constatou que apenas em um caso houve apresentação de denúncia por parte do Ministério Público, escancarando a garantia de impunidade: “O quadro de violência e a alta taxa de homicídios no Brasil são agravados pelo elevado índice de impunidade. Estima-se que apenas de 5% a 8% dos homicídios no país sejam elucidados. Nos casos registrados como ‘homicídio decorrente de intervenção policial’, a impunidade é ainda maior devido às graves falhas no processo de investigação. Essa impunidade alimenta o ciclo de violência e revela problemas na investigação criminal e no sistema de Justiça Criminal como um todo, o que inclui a Polícia Civil, o Ministério Público e o Poder Judiciário”. Disponível em https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. Acessado em 10/05/2018.

[17]Dados obtidos pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação.

[18]Na decisão, destaco os seguintes trechos: “Como já amplamente fixado pela ciência moderna, não existem, em termos biológicos, raças humanas, pela impossibilidade de identificação de padrões genéticos entre os indivíduos humanos que possam autorizar sua divisão em categorias taxonômicas cientificamente aceitas, como subespécies ou variedades, a exemplo do que ocorre com outras classes de seres vivos”.

[…]

Que a conceituação de raça passa ao largo de qualquer suporte fático objetivamente verificável, sendo resultado de uma construção de ordem social, erguida ao longo dos séculos, principalmente durante os processos de colonização e escravização que ocorreram no globo em diversas épocas

Diante disso, qualquer tentativa de determinar se uma pessoa é ou não de uma certa raça implicaria “discriminação odiosa e arbitrária, por implicar inafastável aplicação de critérios preconceituosos, desprovidos de respaldo biológico e calcados unicamente em critérios relativos, casuístas e pessoais. Por este motivo, é inconcebível que um Estado Democrático de Direito, que inclui entre seus objetivos fundamentais a eliminação dos preconceitos raciais, se arvore na condição de árbitro da raça de seus cidadãos”.Disponível em: http://www.jfal.jus.br/noticias/3668

[19]“Os negros nos mercados de trabalho metropolitanos”, Sistema PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego, Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos, Novembro de 2015, disponível em

http://www.dieese.org.br/analiseped/20l5/20l5pednegrossintmet.pdf.

[20]https://www.supremecourt.gov/opinions/15pdf/14-981_4g15.pdf

[21]http://ccs2.ufpel.edu.br/wp/2016/12/30/ufpel-desliga-do-curso-24-estudantes-de-medicina-denunciados-por-fraude-nas-cotas-raciais/

[22]http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/12/justica-barra-posse-de-suspeitos-de-fraudar-cotas-raciais-no-itamaraty.html

[23]http://www.leiaja.com/carreiras/2017/03/27/uff-desclassifica-113-candidatos-por-fraude-em-cotas/

[24]Recentemente o Governador prometeu instituí-las. Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/governo-do-espirito-santo-passara-adotar-cotas-para-negros-garante-frei-david.html. Acessado em 09/05/2018.

[25]Fontes: (i) http://www.estadao.com.br/noticias/geral,pm-de-campinas-determina-abordagemde-

suspeitos-de-cor-parda-e-negra,987908; (ii) https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/

2013/01/23/ordem-da-pm-determina-revista-em-pessoas-da-cor-parda-e-negra-embairro-

nobre-de-campinas-sp.htm; (iii) https://www.cartacapital.com.br/sociedade/orientacaoracista-

na-pm-sp-provoca-indignacao-de-grupo-de-direitos-humanos

[26]Fonte: http://vermelho.org.br/noticia/205726-8

[27]Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-nojardins-

e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm

[28]Se quer ir rápido vá sozinho; se quer ir longe vá em grupo”.

“O sol caminha devagar mas atravessa o mundo”.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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