É Sempre o Negro o Delinquente

Fonte: Gerivaldo Neiva.blogspot

 

Entrevista com a juíza Luislinda Valois Santos

O professor pediu o material de desenho, a custo o pai de Luislinda conseguiu com­prar um, meio remendado. Pois bastou o professor ver o material para magoá-la para sempre. “Menina, deixe de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”. Ela chorou, ainda se emociona quando relembra, 58 anos depois. Mas tomou coragem e retrucou: “Vou é ser juíza e lhe prender”. A primeira parte, ela cumpriu. Em 1984, a baiana Luislinda Valois Santos tornou-se a primeira juíza ne­gra do País. Não à toa, também foi quem proferiu a primeira sentença contra racis­mo no Brasil. Em 28 de setembro de 1993, condenou o supermercado Olhe Preço a indenizar a empregada domésti­ca Aíla de Jesus, acusada injustamente de furto. Aos 67 anos, lança em agosto seu primeiro livro, O negro no século XXI.

 

Como foi sua infância? Imagino que não tenha tido muitos recursos…

Faça uma pequena ideia (risos). Mi­nha mãe era lavadeira e costureira e meu pai era motorneiro de bonde. Minha infância foi miserável, mas meus pais sempre primaram pela educação e pela nossa saúde. Quan­do eu tinha 9 anos, estava começan­do a estudar, um professor pediu um material de desenho e meu pai, coi­tado, não pôde comprar o que ele pediu, mas comprou outro. Quando cheguei à escola, feliz da vida, ele disse: “Menina, se seu pai não pode comprar o material, deixe de estu­dar e vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”. Imagine como foi marcante pra mim (chora). Saí cho­rando. Mas sou muito impetuosa. Voltei, fui em cima dele efalei: “Não vou fazer feijoada para branco, não. Vou é ser juíza e lhe prender”. Em ca­sa, ainda tomei uma baita surra do meu pai. Naquela época, não se po­dia desrespeitar professor.

 

Começou a trabalhar cedo?

Com 7 anos, quis aprender datilo­grafia e, para pagar o curso, minha mãe sugeriu que eu lavasse aquelas fraldas de pano que se usava na épo­ca. Aí fiz isso. Mas, trabalhar real­mente, comecei com 14 anos, como datilógrafa. Comecei na Companhia Docas da Bahia e, logo em seguida, minha mãe tinha acabado de mor­rer, me arrumaram um trabalho no DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, hoje Dnit). Fui crescendo lá: trabalhei como escre­vente, escriturária, chefe de orça­mento. Estudei filosofia, não con­cluí, depois comecei teatro, mas meu pai não me deixou cursar, disse que era coisa de prostituta. Aí, um dia, decidi fazer direito. Já tinha uns 34, 35 anos. Me inscrevi e passei na Universidade Católica. Me formei aos 39 anos, no dia 8 de dezembro e, no dia 9, começaram as inscrições para o concurso de procurador do DNER. Passei em primeiro lugar no Brasil. Mas não pude assumir aqui.

 

Por que não?

A pessoa que passou em último tam­bém era daqui da Bahia. Como eu não tinha padrinho político, algu­mas autoridades me puseram numa sala e falaram: “Doutora, precisa­mos da sua vaga aqui. Vamos lhe oferecer Sergipe ou Paraná”. Aí fa­lei: como vocês estão me mandando embora, vou logo para longe. Fui para o Paraná. Com 90 dias, o chefe da procuradoria de lá se aposentou e fui designada para a vaga dele. Morei lá quase 8 anos.

 

Li que, antes de estudar direito, a senhora participou de um concurso de beleza. Como foi isso?

Trabalhava no DNER, tinha uns 20 anos, e um dia me chamaram na diretoria e falaram: “estão abrindo um concurso da Mais Bela Mulata e você vai ser a nossa miss” (risos). Aí eles foram falar com meu pai. Era de maiô e tudo, imagine… Meu pai fi­cou bastante reticente, mas por fim pediu a seu Rangel, que era o chefe do administrativo, para assinar um documento se responsabilizando pela minha integridade física (risos). A integridade física da época era a tal da virgindade, a preocupação era essa. Teve várias etapas. As mais im­portantes foram no Forte de São Marcelo e na Rua Chile, que era o point. Ganhei como Miss Simpatia.

 

E como se tornou juíza?

Estava em Curitiba e vim de férias pa­ra cá, soube do concurso pelo jornal A TARDE, que meu pai comprou. Fa­lei: pronto, é agora. No dia seguinte, fiz a inscrição e as provas. Aí, uma noite, o telefone tocou e a menina disse que eu tinha sido aprovada. Acordei meia Curitiba, né? (risos). O fato de ser a primeira juíza negra do Brasil só me dá responsabilidade. Até hoje só temos dois ministros ne­gros nos tribunais superiores. Por que isso? A inteligência não é priva­cidade de nenhuma raça. Até por­que só existe uma raça, a humana. Ser juíza não é difícil. É só ter bom senso, estudar de manhã, meio-dia, de tarde e de noite e gostar de lidar com gente. Não pode pensar que, só porque o cidadão é marginal, ele já merece estar enclausurado. Primei­ro se vai ver por que aquele sujeito virou marginal. A sociedade é quem escolhe quem vai delinquir. E te digo mais: nesse momento, a sociedade escolheu que é o negro, pobre, jo­vem, da periferia. Na hora que se tem de condenar, se não tiver a quem condenar, se condena o ne­gro, mesmo que ele ainda esteja no ventre da mãe.

 

A senhora falou que não é “porque o ci­dadão é marginal que já merece estar en­clausurado”. A sociedade espera uma resposta, de todo modo.

A sociedade não colabora para que as pessoas não cheguem a delinquir. O que é que se tem de dar? Oportu­nidades. Primeiro, educação de qualidade e continuada. Imagine uma pessoa que tem oito, dez filhos, se depara uma manhã sem ter o pão para alimentar seus filhos. Se não ti­ver muito equilíbrio, faz bobagem.

 

Já se viu diante de um caso desse? Como a senhora agiu?

Já, no interior. Resolvi da seguinte forma: fui até o prefeito e consegui um serviço de jardinagem para ele. A pena que dei foi que, com o primei­ro salário, ele pagasse o que tinha pego. Nunca mais ouvi falar que es­se rapaz fizesse nada de ilegal. Digo sempre o seguinte: se tiver eu e uma loira juntas, o que sumir primeiro, fui eu que peguei. É sempre o negro que é o delinquente de hoje.

 

No seu trabalho como juíza, ainda sofre muito preconceito?

Sou a sétima juíza mais antiga do Es­tado e nunca consegui ser convoca­da para o Tribunal. Me sinto prete­rida. Tenho certeza de que já era pa­ra eu ser desembargadora há muito tempo, preencho todos os requisi­tos. Para se saber o que é racismo, é só ficar negro por 48h. Certa vez, no juizado de Piatã, aproveitei o tempo para arrumar uns processos. Che­gou uma advogada e falou: ‘O juiz vem hoje?’. Eu aí fiz um sinal para a moça não dizer que era eu. A advo­gada ficou lá, reclamando que juiz nunca chegava na hora, coisa e tal. Na hora da audiência, subi, pus a to­ga e, quando ela me viu, não acertou fazer nada. Tive de adiar a audiên­cia. Falei: ‘Tenha paciência, a senho­ra toma um chazinho de erva-cidreira e, amanhã, nós continuamos’. Precisa maior racismo do que esse?

 

A senhora proferiu a primeira sentença contra racismo no Brasil. Como foi a re­percussão do caso?

Me lembro bem. Aíla Maria de Jesus foi a um supermercado e quando es­tava saindo, o segurança a humi­lhou, disse que ela tinha posto na bolsa um frango congelado e dois sabonetes. Ela falou que, se ele cha­masse a polícia, ela abriria a bolsa. Aí, a polícia chegou e viu que não ti­nha nada. Na época, a repercussão foi que o feitiço virou contra o feiti­ceiro (risos). Comecei a receber ameaças, o pessoal ligava para a mi­nha casa dizendo: “Onde é que essa negra faz supermercado?” Fiquei com medo e pedi afastamento, re­solvi voltar para Curitiba. Aí fui ao banco com meu filho, me sentei e ele foi resolver as coisas para mim. Passou um tempo o segurança ficou meolhando, depois veio outro, depois veio o gerente. E eu lá sem saber o que fazer. Pensei: se eu me mexer para pegar minha car­teira de juíza, eles podem pensar que eu estou armada e me matar. Quando meu filho voltou, criei alma nova. Ele falou: “O que é isso com minha mãe?”. E o gerente respondeu: “Ela ficou muito tempo aí sentada”. Chorei a tarde inteira.

 

No livro O negro no século XXI, a senhora diz que “a Justiça é inacessível ao negro pobre”. A senhora é uma das idealizadoras do Balcão de Justiça e Cidadania, que atende moradores das pe­riferias. Isso vem melhorando?

Sim. Criei o Balcão de Justiça e Cidadania, o Justiça Bairro a Bairro, Justiça Itinerante da Bahia de Todos-os-Santos e o programa Justiça, Escola e Cidadania, para levar a Justiça às escolas públicas. Recebi em Brasília, em 2006, o Primeiro Premio de Acesso à Justiça, pelo trabalho desenvolvido pelo Balcão. A ideia é resolver conflitos pela mediação, inclusive divórcios, separações, pensão alimentícia, que são os casos mais frequentes. As pessoas acham que, para ir até a Jus­tiça, têm de estar com uma roupa muito arrumada, mas não precisa nada disso. Hoje, trabalho no juizado da Unijorge, que eu implantei.

 

Por que a Justiça na Bahia é uma das mais lentas no Brasil?

Primeiro, temos um número pequeno de magistrados e um número inaceitável de desembargadores. No Paraná, que é bem menor que a Bahia, são 120 desembargadores. Aqui, são apenas 35. É humanamente impossível. E a falta de re­cursos colabora bastante negativamente.

 

O movimento negro muitas vezes pleiteia políticas específicas, como as cotas. Isso não fere a Constituição, que diz que “todos são iguais perante a lei”?

Não se pode igualar os desiguais. Tudo que é inferior é encaminhado ao negro. As cotas são importantes, mas não permanentemente, por­que senão parece esmola. É enquan­to se equipara o ensino público e pri­vado. O problema é que a qualidade da escola pública não melhora.

 

A maioria das vítimas de homicídio em Salvador são jovens negros. Qual é a par­cela de responsabilidade da Justiça? Há apenas duas varas do júri para julgar es­ses casos.

Depois da visita a presídios, resolvi criar um projeto: Inclua no trabalho e na educação e exclua da prisão, para ocupar os jovens da periferia. A te­levisão fica com aquele ‘compre, compre, compre’. O adolescente vê um tênis e quer adquirir, seja como for. Pai e mãe também não têm con­dições, saem para trabalhar, deixam o menino sozinho. O que acontece? O traficante vai e coopta. O poder pú­blico é culpado por não dar condi­ções para as famílias terem uma vida mais digna. Isso tudo vai desaguar no Judiciário, e falta estrutura.

 

No livro, a senhora também fala sobre aborto. É a favor da descriminalização?

Acho que se trata o assunto olhando somente a mulher pobre. A mulher rica faz aborto a todo instante, mas isso não vem a público, ela não mor­re, nem é presa. Acho que tem de deixar de ser crime, sim. Ninguém aborta porque quer.

 

A senhora é de santo, e o pastor Márcio Marinho, da Igreja Universal, assina a contracapa do seu livro. Como é a relação de vocês?

Me criei no candomblé, sou filha de Iansã. Acho que, primeiro, não se deve olhar a religião da pessoa, mas sim quem ela é. Já fiz parcerias com a Igreja Universal, e eles sempre cum­priram o papel deles.

 

Entrevista publicada em Muito, revista semanal do grupo A Tarde, domingo, 26 de julho de 2009, #69.

 

Matéria original: É sempre o negro delinquente

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