Elza Soares e a derrota do ódio

Elza e Garrincha, em 1966 (arquivo Estadão)

Confesso que foi difícil pegar o bonde Elza Soares enquanto ele estava parado na estação e todo mundo se estapeava para entrar ao mesmo tempo. Os bondes Elza sempre provocam a mesma reação. Ouvi ‘Deus é Mulher’ talvez sem o mesmo arrebatamento instantâneo de muitos, um pouco mais desconfiado do que me pareceu antes de conhecê-lo uma espécie de lado B ou parte 2 do transformador ‘A Mulher do Fim do Mundo’. Decidi então ir a um dos shows de Elza no Sesc Vila Mariana e acabei me expondo a tudo ao mesmo tempo: som, imagem, luz, escuridão, banda, voz, silêncio e Elza, a do palco e a do estúdio.

Por Júlio Mariam do Estadão 

Elza e Garrincha, em 1966 (arquivo Estadão)

Elza Soares se tornou uma entidade em vida, a rainha Njinga disposta a vingar o próprio passado na ponta de seu verbo, um oráculo livre de contágios e engajamentos de Facebook, a mulher que foi até o fim do mundo e voltou para decretar guerra não ao outro, não ao homem e não ao branco, mas ao ódio. E Elza faz isso com rara legitimidade por uma única questão: ninguém sobreviveria à mágoa da história que viveu sem passar a gestar um monstro em si. Ao vencê-lo, ela carrega na pele a linha do tempo de um povo e sobe ao trono como um Deus mulher.

Aos 11 anos de idade, seu pai a fez sair da escola para se casar com um amigo que a submeteria aos primeiros casos de violência doméstica de uma longa vida que, ao que consta em apurações paralelas – oficialmente, ela não abre o jogo – chega aos 88 anos. Seu primeiro filho viria aos 12. O segundo, morreria de fome quando ela tinha 15. Aos 21, era viúva com cinco meninos para criar.

Antes de ser cantora, foi empregada doméstica e faxineira. Sem família que a ajudasse, pagava a um casal para que assumisse fraldas e mamadeiras em sua ausência. Um dia, ao voltar, percebeu que uma das meninas não estava e desesperou-se ao confirmar que havia sido roubada pelos cuidadores. Elza reencontraria uma mulher feita que já imaginava morta anos depois.

Mais tarde, em 1968, se casaria com Garrincha e enfrentaria a inquisição de uma opinião pública que não admitia a jovem cantora negra em início de carreira se aproveitando de um craque da Seleção Brasileira. Elza era vaiada pelas ruas, levava ovadas, sua casa era pichada e as ameaças de morte chegavam pelo telefone. Sesc Vila Mariana, 2018: “Mil nações, moldaram minha cara, minha voz, uso pra dizer o que se cala. Ser feliz no vão, no triste, é força que me embala, o meu País é meu lugar de fala.”

Garrincha dirigia embriagado seu Galaxie pela Rodovia Dutra em 13 de abril de 1969 quando um caminhão o fechou e provocou um acidente grave. Elza, Garrincha e a filha, Sara, sobreviveram, mas a mãe de Elza, dona Josefa, foi arremessada para fora do carro e teve morte instantânea. Alguns meses depois, sem luto nem velas, os militares entraram na casa do casal de coturno na porta e beretas em punho. Abalado pela iminência de uma prisão, o casal se mudou para a Itália para voltar apenas seis anos depois com o casamento em desalinho. Garrincha, transpirando o doce ardido do álcool curtido em crises de ciúmes cada vez mais violentas, começou a bater em Elza Soares. Com dois maridos pugilistas, ela se tornaria, em 2017, a Maria da Vila Matilde. “Cadê meu celular, eu vou ligar pro 180. Vou entregar teu nome e explicar meu endereço… Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.

Garrincha percebeu tarde a mulher que havia perdido. Queria Elza de volta, mas o bonde passou. Devastado pelas próprias memórias, foi ao estoque e entornou a frustração no álcool de cada dia, de cada hora, dos minutos em que bombardeava o fígado o fazendo finalmente explodir no dia 20 de janeiro de 1983, levando-o aos 49 anos de idade.

O único filho de Elza com o homem ao qual declararia amor por toda vida, Garrinchinha, tinha nove anos quando voltava da terra do pai, Magé, Pau Grande, Rio de Janeiro. Era uma tarde de chuva, pista molhada, e o pesadelo se repetiu. O carro derrapou, a porta se abriu e o garoto foi arremessado para dentro do Rio Imbariê. Elza, pela primeira vez, não quis se levantar mais. Sentindo-se culpada por Garrincha e arrasada por Garrinchinha, tentou tirar a própria vida.

Algo deu errado e Elza deu certo. Seu destino era o trono de um poder legitimado pela dor. Sesc Vila Mariana, 2018. Vigiando do alto de um trono sua banda base estranhamente composta por homens demais e mulheres de menos, ela não derrama uma só lágrima por amor nem por saudade. Quando matou o ódio, mandou junto a autopiedade, os boleros e as canções para poder depor no tribunal do fim do mundo não como vítima, mas como esperança. “Acordo maré, durmo cachoeira / Embaixo sou doce, em cima, salgada / Meu músculo musgo me enche de areia / E fico limpeza debaixo da água / Misturo sólidos com os meus líquidos, dissolvo pranto com a minha baba / Quando tá seco, logo umedeço / Eu não obedeço porque sou molhada / Enxáguo a nascente e lavo a porra toda pra maresia combinar com o meu rio, viu / Minha lagoa engolindo a sua boca, eu vou pingar em quem até já me cuspiu, viu.”

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