Ferguson e o racismo nosso de todo dia

Minha nossa, lá vem esses negros encher a paciência novamente. Tudo para eles é racismo.

Fera, nós vivemos isso. Simples.

Por  no Lugar de Mulher 

Ferguson está localizada no Estado do Missouri, EUA. Um pouco mais da metade dos seus habitantes são negros e pobres. Os índices de desemprego entre estes é quase o dobro dos moradores brancos. O número de abordagens policiais visando pessoas negras é desproporcional diante da distribuição da população(veja aqui). As perspectivas são poucas.

Enfim, chega de falar de números, falarei de seres humanos. Michael Brown tinha 18 anos quando foi abordado por um policial por ser suspeito de furto em uma loja de conveniência. Pelo relato de testemunhas, o policial estava dentro do carro e entrou em luta corporal com Michael, que levou um tiro no dedo e saiu correndo. Tirando as versões conflitantes, alguns fatos:

– Michael estava desarmado

– Ele levou dois tiros na cabeça (total: 6 tiros)

– Nenhuma testemunha relata luta corporal no momento dos tiros fatais, ou seja, Michael estava distante do policial.

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Esta semana, um júri com nove pessoas brancas e três negras decidiram que o policial não deve ir a julgamento. O promotor responsável culpou as redes sociais pelos protestos e clamor social que o caso gerou. Não, caro promotor, você está errado. O clamor foi gerado pela forma que o caso foi tratado, sem fotos da cena do crime, com evidências sendo divulgadas quando deveriam permanecer secretas, etc.

Mas você fica falando de um caso que aconteceu em outro país, o que nós temos a ver com isso? Afinal, no Brasil essas coisas não acontecem.

Não? Tem certeza? Acontecem sim.

Brasil, Bahia, Salvador. Davi Fiuza.

Davi mora em uma das comunidades mais pobres de Salvador. Assim como Ferguson, a Bahia possui uma imensa população negra, e em sua maioria pobre. Davi é negro e tem 16 anos. Em outubro, foi abordado em uma operação policial feita no bairro onde mora, foi encapuzado, amarrado e levado em uma viatura. Davi nunca mais apareceu. Ninguém sabe o que houve com ele. As investigações são lentas e os familiares não acreditam que ele ainda seja encontrado com vida. Uma intensa campanha nas redes sociais questionou o ocorrido com Davi. A polícia dá poucas respostas e alega que o adolescente era usuário de drogas. Por isso ele deveria sumir?

Adolescentes, negros, pobres, violência e polícia. Os dois casos servem apenas para exemplificar. Poderia descrever mais centenas deles.

Nas nossas cidades, os negros também são maioria nos bairros pobres. Em qualquer lugar, são preferencialmente suspeitos. Os autos de resistência tem entre suas maiores vítimas esses mesmos indivíduos.

Maré, 2014 (daqui)

Será uma grande coincidência?

Somos vítimas do chamado racismo institucional. Michael Brown era um delinquente, e não importa de que forma, o policial estava cumprindo seu dever e protegendo a sociedade. Davi não foi formalmente acusado e sumiu. O Estado que deveria proteger é aquele que agride e mata, esse mesmo que aborda pessoas apenas com base na sua origem étnica.

O clamor social que isso gera origina-se na opressão que todos nós sentimos. A presença do Estado deveria nos confortar e não amedrontar. Para nós negros e moradores da periferia, essa presença é sinônimo de terror.

Algo precisa mudar aqui também.

Ontem me lembrei da música Strange Fruit. Essa música foi composta nos anos 30 como forma de protesto pelo linchamento de negros no sul dos Estados Unidos. Billie Holiday a imortalizou. Abel Meeropol escreveu a música. Ele era branco. Essa é uma luta de todos.

Southern trees bear a strange fruit,

Blood on the leaves and blood at the root,

Black body swinging in the Southern breeze,

Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant South,

The bulging eyes and the twisted mouth,

Scent of magnolia sweet and fresh,

And the sudden smell of burning flesh!

Here is a fruit for the crows to pluck,

For the rain to gather, for the wind to suck,

For the sun to rot, for a tree to drop,

Here is a strange and bitter crop.

(Árvores do sul produzem frutos estranhos/ sangue nas folhas e sangue na raíz/ corpo negro balançando na brisa sulina/ frutos estranhos pendurados nos Álamos./ Cena pastoril do valente sul/ Os olhos saltados e a boca retorcida/O doce e fresco perfume da Magnólia/ E o repentino cheiro de carne queimada!/ Aqui está a fruta para os corvos arrancarem/ Para a chuva colher, para o vento levar/ Para o sol apodrecer, para a árvore deixar cair/ Aqui está a estranha e amarga colheita)

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