Fogo pela boca

Não eram tempos de felicidade, mas era quase. Não era exatamente amor, era um reconhecimento absoluto. Eram tão próximos que pararam de contar o tempo

FONTEO Globo, por Ana Paula Lisboa
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Reinava. Não por força, mas porque podia. O cheiro de terra úmida do homem mais bonito do mundo. Os movimentos suaves e precisos, a altura imponente, o corpo esguio e muito escuro. Como numa revolta poética, se anunciava em trovões.

Mesmo forte, reinava porque tinha o que mais ninguém possuía. Não era negociável em feiras, nem mesmo de se comprar nos maiores mercados. Nenhum dinheiro seria o bastante, nenhuma pedra mais preciosa.

Pessoas de mãos dadas em meio à destruição em Rafah, no sul da Gaza, após as batalhas entre Israel e Hamas — Foto: AFP

Depois, havia a outra, a que reinava junto. Os dois reinavam um reino expandido, espichado, que se agigantava cada vez que desvairavam, gemiam juntos, e ela sorria com a mão entrelaçada na dele.

Começou porque, ao chegar, pareceu que ele estava muito tempo à sua espera. Ela sorriu de volta e, enquanto sorria, sentiu uma pontada que vinha da base da coluna e atravessava o corpo numa diagonal para cima. Uma agulha fina, longa e prateada que a atingiu em algum lugar entre seu coração e a boca do estômago. Um lugar sem nome que ela chamou de peito.

Pensava em cansar, ela na verdade não via a hora de enjoar do gosto, do cheiro, mas o momento nunca chegava.

Havia dias em que gargalhava desacreditando de si mesma. Às vezes, durante o beijo, pensava como havia chegado até ali, tentando reconstruir na cabeça os passos, buscando o momento exato da virada, o primeiro daquele caminho que ela ainda não havia decidido se seria de prazer ou de lamento.

Permanecia pensando no impossível e ainda havia a vontade de correr para longe, mas ela diminuía, diminuía, diminuía. Juraram nunca amanhecer os mesmos.

Não eram tempos de felicidade, mas era quase. Não era exatamente amor, era um reconhecimento absoluto. Eram tão próximos que pararam de contar o tempo.

Mas chegaram os tempos de guerra e os inimigos eram tantos. Houve as primeiras vitórias, honrosas, que acharam todos que seriam presentes.

Porém, quando os primeiros foram capturados e o sangue dos filhos de Cossô começou a escorrer, não existiu olho que ficasse seco.

Mutilados, os homens eram enviados aos pedaços de volta para casa.

Cossô era cercada por 17 portões, construída bem em cima de uma pedreira para ser vista de longe, iluminada pelo sol que permanecia o dia inteiro e onde nada ficava escondido porque a verdade era superior.

Era no entorno que os corpos se acumulavam, e o cheiro já passava por cima dos muros. Dentro deles, além do abatimento e do luto, havia fome, sede e horror em Cossô, como nunca antes.

A tristeza era muita e do alto de uma pedreira, ele pediu ajuda para saber o que fazer. O sentir virou raiva e a raiva era tanta que ele começou a bater nas pedras com o seu oxé. Contam “que o machado arrancava das pedras faíscas, que acendiam no ar famintas línguas de fogo, que devoravam os soldados inimigos e a guerra perdida foi se transformando em vitória.”

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