A interessante história dos negros argentinos

Por: Leo Gerchmann

Estudo do antropólogo argentino Daniel Schavelzon, feito nos anos 1990, mostrava a presença de afrodescendentes na Argentina em geral e em Buenos Aires, especificamente. Conta que os descendentes de africanos deixaram Buenos Aires em direção ao interior do país, onde vivem hoje em número reduzido.

– Eles existem em pequeno número, entre outros motivos, porque, durante os conflitos dos quais a Argentina participou, foram colocados na linha de frente – dizia Schavelzon.

A cidade de Buenos Aires, na época da Argentina colonial, chegou a ter 30% da sua população composta por negros. A confirmação dessa tese ocorreu quando Schavelzon e outros arqueólogos encontraram uma vasilha redonda de cerâmica africana, moldada artesanalmente. Bem antes de ser encontrada a vasilha, haviam sido achados, em 1988, objetos de magia africana, como um boneco enforcado por um pedaço de corda -um legítimo exemplo de vodu – e perfurado no peito por meio de um pedaço de osso fino.

Os locais onde há mais descendentes de africanos na Argentina são as províncias de Corrientes, Entre Ríos e Misiones, próximas do Brasil (Rio Grande do Sul) e do Uruguai.

Aqui, você pode ler a reportagem que este blogueiro fez para a Folha de São Paulo quando era correspondente deste jornal em Buenos Aires, em novembro de 1997

Agora, o repórter Michael T. Luongo, do jornal The New York Times, volta ao tema, depois de visitar lugares incríveis para correborar o estudo. Veja que interessante:

A capela na pequena comunidade de Chascomús, à beira do lago, no mínimo, deixa a desejar: o exterior, de tijolos caiados, é parcialmente obstruído por uma maçaroca de vinhas e arbustos, e seu interior, pouco iluminado, não é mais majestoso que a fachada. Os bancos de madeira e o chão de terra batida, irregular, quase não recebem a luz natural da única janela.

As paredes cinzentas, empoeiradas e cheias de rachaduras, estão enfeitadas com crucifixos, fotos, ícones – coisas que os visitantes deixam para trás para marcar a peregrinação. O altar é baixo e recoberto de grossa camada de parafina das velas, flores e um panteão de santos e madonas negros e divindades africanas – como a Iemanjá da religião iorubá. Apesar de mal conservada, a Capela dos Negros atrai pouco mais de 11 mil turistas por ano para ver a igreja que ganhou o nome dos escravos libertos que a construíram, em 1861.

– A capela é o nosso ponto de referência; ali podemos mostrar a verdade, ou seja, o fato de estarmos aqui – diz Soledad Luis, afro-argentina que trabalha no centro de turismo.

A Capela dos Negros fica fora do circuito turístico, mas faz parte de uma lista de locais incluídos no projeto Rota dos Escravos da Unesco, em 2009. Sua inclusão mostra a conscientização crescente da herança africana na Argentina, país supostamente mais europeizado da América do Sul.

A nação já teve uma presença africana marcante graças aos escravos que eram levados para lá, mas sua população negra foi dizimada por vários fatores, incluindo grandes perdas na Guerra do Paraguai, nos idos de 1860; uma epidemia de febre amarela da qual a maioria dos argentinos brancos e ricos escapou e a descendência inter-racial que fez com que, depois de várias gerações, a cultura africana se perdesse, assim como as características físicas. Sem contar que a imigração europeia inchou a população branca: foram 2,27 milhões de italianos que ali chegaram entre 1861 e 1914.

A mudança demográfica foi drástica. Em 1800, às vésperas da revolução contra a Espanha, os negros constituíam mais de um terço da população do país: 69 mil de um total de 187 mil, de acordo com o livro “Afro-Latin America”, de 2004, de George Reid Andrews.

Em 2010, 150 mil se identificaram como afro-argentinos, ou 0,365 por cento de uma população de 41 milhões de habitantes, de acordo com o primeiro censo na história do país que levou em conta também a raça da população.

A cultura que os escravos levaram consigo, porém, permanece – e, de uns anos para cá, a Argentina deixou de desvalorizar suas raízes africanas para redescobri-las, já que acadêmicos, arqueólogos, imigrantes e um movimento de direitos civis incipiente desafiam a ideia de que “africano” e “argentino” são termos isolados que não se misturam.

Muita gente acha que criar trilhas turísticas, com placas e brochuras, seria a melhor forma de ensinar à população local e aos turistas essa história há tanto tempo escondida. Em minhas várias visitas nos últimos anos e durante o tempo em que vivi na Argentina, a trilha me levou a uma outra nação, a que está começando a ser incluída na narrativa que faz de si mesma.
Minha primeira parada exigiu sapatos de dança. Acompanhei uma aula de tango no Movimiento Afrocultural na Calle Defensa, no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, centro cultural que foi inaugurado em 2009 para promover o patrimônio africano e afro-argentino.

– Não há dúvida de que o tango tem origem africana; o único senão é saber exatamente como aconteceu – afirma a professora, Veronica Rueco.

Juntos, observamos o pessoal local e os turistas praticarem os passos no centro, um galpão adaptado cujas paredes são forradas de tambores de candombe com imagens entalhadas retratando os navios negreiros lotados.

Ela comenta que a dança, criada no final do século 19, é o resultado da fusão da cultura africana e dos imigrantes europeus (segundo Erika Edwards, da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, a própria palavra “tango” originou-se de um termo nigero-congolês trazido pelos escravos).

Minha visita seguinte foi no subterrâneo. Não é segredo que, sob as ruas do Centro Velho de Buenos Aires há um labirinto de túneis – usados pelos contrabandistas dos tempos coloniais para evitar as tarifas espanholas – e pelos padres, que se movimentavam entre os templos jesuítas como São Francisco e Santo Inácio na Manzana de las Luces. Menos conhecidos são os que passam sob prédios residenciais, como o número 1464 na Defensa, em San Telmo. A complexidade da estrutura, que ganhou até um documentário em 2009 dirigido por David Rubio, foi descoberta por Freda Montaño, uma afro-equatoriana que administra o restaurante Rincón Ecuatoriano e já morou ali. A história do edifício dos tempos coloniais se esconde, em parte, por causa da fachada Belle Époque que ganhou na virada do século passado, período em que Buenos Aires decidiu imitar Paris.

Freda diz que encontrou as passagens no porão e uma pequena porta para “quem trabalhar na casa, de forma a não intervir com o que estiver sendo feito pelos brancos”.

De acordo com Freda, os vizinhos contam que os túneis vão até o Parque Lezama, onde os escravos eram vendidos e levados, por baixo da superfície, para aqueles que os compraram.

A Plaza San Martín, onde está situada a estátua do homem que libertou a Argentina, José de San Martín, era o outro local onde se realizavam leilões de escravos.

Os dois espaços, além de bairros inteiros no centro colonial da capital, também fazem parte da Rota dos Escravos da Unesco, embora quase nenhum esteja discriminado com placas históricas.

Freda abriu um centro cultural no número 1464 da Defensa, que não durou muito porque o proprietário queria vender o imóvel. Torce para que a prefeitura o compre e o transforme em museu – e acredita que demonstrar a relação dos túneis com a escravidão beneficiará tanto os nativos quanto os turistas, pois “o mundo não sabe de nada disso, já que o pessoal daqui diz que ninguém tem ascendência africana”.

Houve outras tentativas de esmiuçar as raízes africanas da Argentina na capital, incluindo um museu marítimo, hoje fechado, que abordava o comércio de escravos em La Boca. E, durante as comemorações do bicentenário da Argentina, em 2010, várias instituições culturais se esforçaram para marcar o passado diverso do país: o Museu Histórico Nacional reuniu pinturas de seu acervo permanente relacionadas aos 50 anos da era de Emancipação, e o centro de exposições Casa Nacional del Bicentenario ocasionalmente pesquisa as influências africanas na música argentina. Fora de Buenos Aires, em San Antonio de Areco, há exposições sobre os gaúchos negros no Museo Ricardo Güiraldes e no Museo Las Lilas de Areco.

Todas essas atrações, porém, analisam o passado. Como parte da mudança e da aceitação da cultura afro-argentina, o país está começando também a se abrir para a influência africana contemporânea. O restaurante El Buen Sabor, em Villa Crespo, foi aberto por um camaronês, em 2008. O espaço pequeno, todo amarelo, não tem nem 25 lugares, mas sua fama já vai longe. Conheci o dono, Maxime Tankouo, durante uma das minhas visitas.

– O povo me achava meio estranho quando cheguei, em 2001. Só depois de oito dias é que vi outro negro. Aqui gosto de misturar muitas influências, marroquina, camaronesa, africana, tudo no mesmo prato” – ele conta. A princípio, a clientela de Tankouo eram os turistas, principalmente os franceses; hoje, são moradores locais.

Sem querer, a chegada desses imigrantes está preenchendo um vazio que, em parte, já foi preenchido: até restaurantes tradicionais têm um toque afro, mesmo que não intencional.
– Nosso símbolo gastronômico tem um personagem africano – diz Nicolás Fernández Bravo, antropólogo social da Universidade de Buenos Aires, a respeito do assado, versão argentina do bom e velho churrasco, consumido por praticamente todos os turistas.

E falou sobre o clássico da literatura argentina do século 19, “El Matadero”, de Esteban Echeverría, que descreve como as vacas eram abatidas e as mollejas, ou entranhas, eram divididas.
– A moleja era dada aos escravos. Hoje ela faz parte da refeição. Aliás é considerada uma iguaria. Mas naquela época jamais seria consumida pela elite. 

A Argentina ainda lida com sua identidade complicada. Na capela, Soledad me contou que muitos turistas nacionais lhe confessam ser ela a primeira afro-argentina que conhecem, com alguns até custando a acreditar. Por causa dessa reação ela acredita que a história dos negros deve ser contada por negros.

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Fonte: Clicrbs

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