Lívia Natália: “Venci a resistência a escrever sobre o amor”

Desde que foi iniciada nos rituais do candomblé, há oito anos, Lívia Natália, 38, recebe diariamente presentes de Oxum. O mais recente, fruto de uma trajetória literária vigorosa, foi o título de melhor livro de poesia no Prêmio APCA 2017 para Dia Bonito pra Chover (Editora Malê, 2017). Na obra, 30 poemas tratam da temática universal do amor, sob o olhar de uma mulher negra. Reduto de homens brancos, a Associação Paulista de Críticos de Arte é a mais tradicional instituição de críticos do Brasil. Recebida com surpresa, a notícia reforça o seu nome para os olhares atentos da literatura nacional. “Não me iludo”, afirma, citando Gilberto Gil. Também em 2017, Lívia foi convidada para a coletânea É agora ou nunca – Antologia incompleta da poesia brasileira contemporânea, organizada por Adriana Calcanhoto e lançada pela Cia. das Letras. A obra foi publicada em Portugal, pela Cotovia. Nascida e criada no bairro de Itapuã, Lívia é doutora em literatura pela Ufba, onde é professora de teoria literária. Já publicou Água Negra (Caramurê, 2010), Prêmio Banco Capital de Poesia, Correntezas e Outros Estudos Marinhos (Ogum’s Toques, 2015) e Água Negra e Outras Águas (Caramurê, 2016). Seu trabalho ganhou olhares curiosos, em 2016, quando o poema Quadrilhafoi censurado em outdoors em Ilhéus, após vencer o projeto Poesia nas Ruas, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). Nesta entrevista, ela fala sobre a importância política do APCA para o reconhecimento da literatura produzida por autoras e autores negros no Brasil.

Por Luís Fernando Lisboa, do A Tarde

A poeta baiana Lívia Natália foi premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte – Foto: Adilton Venegeroles

 

Como foi receber a notícia do título de melhor livro de poesia no prêmio APCA 2017?

Primeiro, achei que era engano. Lembro que no mesmo dia, logo cedo, saiu uma lista com livros do ano no  Suplemento Pernambuco. Um escritor chamado Allan da Rosa, lá de São Paulo, indicou Dia Bonito pra Chover. Já estava superfeliz. Como sou ‘interneteira’, estou o tempo todo conectada, vi a notícia e compartilhei. Daí a pouco, uma crítica literária de São Paulo comentou no link: “Parabéns pelo prêmio”. Pensei: “Oxente, prêmio?”. Como estava corrida na hora, agradeci e segui o dia. Mais tarde, executava o ritual clássico para dormir, quando ouço “blim-blim”. Aí, peguei o celular e vi um link com uma mensagem: “Parabéns pelo APCA!”. Confesso que fiquei alguns instantes parada, tentando processar. Como moro sozinha, olhava para a cara perdida de Mariah, minha cadela, e dizia: “Que bicha nojenta, você não sabe o que é um APCA!” [risos]. No outro dia, descobri que o editor tinha inscrito o livro.

A partir da história da literatura brasileira e no lugar institucional ocupado pelo Prêmio APCA no país, o que acha do seu nome como ganhadora?  

Primeiro, é uma conquista política para o povo negro. Sempre digo, e as pessoas me conhecem por isso: não sei fazer sozinha. Sou uma pessoa de axé. Então, no candomblé,  tem uma dinâmica que é assim: todo trabalho é coletivo. Mesmo naqueles de segredo, que exigem recolhimento,  sempre haverá, junto do pai ou mãe de santo, um ogã, yakekerê ou babakekerê. Alguém vai estar ali, partilhando. Por isso, a primeira questão é que precisamos entender, e a crítica literária principalmente, que escritoras e escritores negros constroem literatura. Espera-se que, ao falar de Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, por exemplo, a pergunta que se levante seja: de que favela essas mulheres vieram? Associam suas obras a uma dimensão sociológica e não literária. Mas, se você ler qualquer uma dessas escritoras, verá que é literatura extremamente forte. Só que os críticos não conseguem enxergar isso.

O APCA também está inserido nesse debate?

Ganhar o Prêmio APCA, para mim, faz parte dessa questão. Continuamos dizendo: “Olha, vocês estão prestando atenção aqui? Estamos produzindo literatura. Não estamos fazendo sociologia literária”. Isso também importa porque conheço muitas jovens negras que se inspiram no que eu faço. Aqui em Salvador, existe um grupo de meninas fantástico chamado Coletivo Zeferinas. Elas fazem poesia como poucas coisas já vi nessa cidade, muito fortemente. E eu sei que, para elas, meu trabalho funciona como exemplo.  Então, o prêmio  cria uma visibilidade não apenas para mim. Quando Ricardo Aleixo, escritor que gosto muito, me parabenizou, eu disse: “Olha, Aleixo é nosso”. Ele logo me chamou a atenção: “Foi você que escreveu, o prêmio é seu”. Repliquei: “Tudo bem, aceito como meu, mas quero que  sirva como guarda-chuva e faça com que as pessoas que não dão visibilidade à escrita de pessoas negras, a crítica literária principalmente, enxerguem o que estamos escrevendo”. Tem muita gente boa produzindo. No entanto, acabam subsumindo a força da nossa produção, sob uma máscara que diz: é uma literatura ideologicamente orientada.

“Minha braveza é de água Essa gramática que Oxum constrói me constitui: o silêncio, a coisa de mergulhar e ninguém saber o que tem lá por dentro”

Lívia Natália

O que expressa o lugar de Dia Bonito pra Chovernessa cena literária que você descreve?

Esse livro é uma armadilha para uma crítica fácil porque parece que é só um livro de amor. Mas quem acompanha a minha produção sabe que, em 2016, publiquei um texto chamado “Eu mereço ser amada”, em que discuto a dimensão afetiva na vivência de mulheres negras, esse preterimento afetivo. A solidão da mulher negra. Então, essa obra narra determinada vivência amorosa, mas é um livro de militância também. O que chamo de militância afetiva, poder dizer: “Também preciso falar de amor”. Uma das coisas que o racismo faz é nos desumanizar. E como nos desumaniza? Dizendo que não temos complexidade subjetiva, com corpos matáveis, assassináveis.

Como surgiu o impulso para o livro?

Tinha muita resistência de escrever poesia sobre amor. O primeiro poema que criei foi gestado após um dia andando pela rua com meu ex-companheiro. Percebi que ele, homem mais velho, não pegava em minha mão. E a gente já estava há um tempo juntos. Pensava: “Oxente, que homem estranho, como é que anda pela rua sem segurar em minha mão?”. Eu, mulher de Oxum, muito dengosa, me dizia: “Ah, não, eu quero segurar na mão”. Mas, sem querer me oferecer e impor isso. Aí, um dia, escrevi esse poema, que num trecho diz: Tem peso na sua mão? Achava que era somente uma mulher apaixonada. Só que depois comecei a ler muito sobre essa questão da solidão da mulher negra. Via bell hooks, Cláudia Pacheco, estudei sobre as famílias negras. De repente, me vi escrevendo vários poemas sobre essa vivência afetiva. Então, entendi que era isso: um livro de poemas de amor. Esse meu ex-companheiro, que é uma pessoa muito sensível, leu a grande maioria dos textos em primeira mão. No dia do lançamento, brinquei dizendo que o livro era sobre essa história e que as pessoas vão ler por um incidente, porque saiu publicado.

E de onde vêm as suas referências de amor?

A minha visão de amor é muito influenciada por duas autoras, básicas na minha formação: primeiro, Clarice [Lispector]. Ela é uma pedra de toque, sem possível deslocamento. Não é porque sou uma escritora de literatura negra que vou rechaçar toda minha formação dentro de uma literatura canônica. Sou uma professora do curso de letras, que é um curso canônico. Então, uma das grandes alegrias que a área de letras me deu foi a possibilidade de ler muitas coisas de Clarice Lispector. Esse amor na obra dela me interessa bastante. É sempre ambivalente, sempre contraditório. E a outra autora que me ensinou a falar de amor foi Conceição [Evaristo]. O amor em Conceição é muito desamparado o tempo inteiro. Tanto que o livro nasce nessa clave: de que amor estou falando? De que afeto amoroso?

O título tenta expressar imagens, em geral, tidas como conflitantes.  

Isso, é essa tensão. A ideia é conseguir flagrar esse limite da tensão afetiva, que amor não é só o dia de sol. E o dia de sol às vezes incomoda, né? Então, chuva é boa, se vier. Muitas vezes pode atrapalhar. O amor é uma máquina tão complexa que  nunca vamos saber como funciona. Sempre digo que tenho muita preguiça de recomeçar no amor porque você tem que recontar todas as histórias importantes da vida, entender o ritmo do outro. Mas, ao mesmo tempo, sou encantada por esse momento.

Como é lidar com a literatura canônica e, ao mesmo tempo, ser voz de uma literatura que não tem receio de se dizer negra?

Eu gosto muito de uma música de Gil que diz: “Não me iludo”. Uma das coisas que sei é que a minha poesia ecoa, justamente, porque estou dentro de uma lógica estética que é branca, e etnocêntrica. Até por conta da minha formação como leitora. E eu não rechaço isso. Li Bandeira, Cecília, Clarice, Pessoa… Há uma literatura ocidental etnocêntrica que foi a literatura onde fui afetivamente criada. Além disso, como nasci em 1979, os autores negros que produziram daquele momento até aqui não são suficientemente lidos na escola. Li Machado de Assis sem ninguém me dizer que ele era negro. O sintoma do apagamento racial de Machado está naquela propaganda da Caixa, de alguns anos atrás [2011], em que representaram ele como branco. Tinha lido pouca coisa de Augusto dos Anjos, Lima Barreto. E sem saber da discussão que sustenta aquele texto. Então, sei que muitas pessoas brancas gostam do meu texto porque sentem um ressoar daquilo que estão acostumados a ler. Não vou dizer que me é desconfortável acionar essas referências de leitura no momento em que escrevo. Ao mesmo tempo, é um jogo duplo para o leitor: enquanto lê dentro de uma estética etnocêntrica, imerge num corpo discursivo extremamente negro.

O poema Quadrilha, por exemplo…  

Eu vi a notícia que motivou esse poema sem querer.  Alguém me mostrou no celular.  No dia seguinte, os jornais diziam que os meninos estavam em  formação de quadrilha para roubar caixas eletrônicos. Aí, me lembrei do primeiro verso do poema de Drummond que recebe esse título, e pensei: por que quadrilha de branco é de Drummond, amorosa, e quadrilha de preto é  de assaltante? Então, escrevi.

A água aparece sempre nos seus títulos?

Tem um caso engraçado sobre o livro mais recente. Estava falando no Enegrescência, um sarau muito legal na cidade, e fui ler alguns poemas do Dia Bonito pra Chover. Antes de começar, eu dizia: “Gente, esse é o meu primeiro livro que não tem água no título”.  Alguém me olha e afirma: “Olha a água aí na chuva, ela é feita de quê, senão de água?” Então, entendi que é água no caminho. Como a gente diz no candomblé, é ómí odun,  caminho de água.

Correntezas e Outros Estudos Marinhos (2015), seu livro anterior, é dedicado à sua mãe. Por quê?

Correntezas é  muito pessoal porque eu fiz para ela, que está com Alzheimer.  Quis pensar como minha mãe, e as mulheres negras da minha família, nos construímos.  Quando me separei do primeiro marido, ela disse uma coisa que me deixou atenta: “Não é qualquer homem que aguenta a gente, somos fortes”. Isso me marcou. Correntezas  tenta falar dessa mãe, que é regida por Iemanjá Ogunté, mulher forte. É um tufão. Nasci diametralmente oposta a ela. Mas, como diz Luedji, eu sei ser trovão.

Para ganhar o APCA foi preciso bravura?

Minha braveza é feita de água. E água pode ser uma poça, um rio ou uma tromba.  Essa gramática que Oxum constrói me constitui muito: o silêncio, essa coisa de mergulhar e ninguém saber o que tem lá por dentro.  Toda vez que  começo a falar de água, me lembro que quando aprendi os estados sólido, líquido e gasoso, pensava: “Ela é sempre água, independente de como esteja se apresentando”. Tem uma frase muito bonita que o Ruy Espinheira, um dos poetas que gosto de ler, sempre fala: “Todo escritor escreve com aquilo que ele é”.

E agora? Quais os próximos planos?

Neste ano, saem mais dois livros. O primeiro deles é Sobejos do Mar (Caramurê). O que é sobejo? Resto, né? Uma coisa que sempre me chamou atenção é como o mar deixa restos. Aliás, a água de um modo geral. Nem tudo é digno de levar. Viajei até Salinas da Margarida, um lugar da minha infância na ilha, para terminar de escrevê-lo. Os poemas são mais sisudos, mais curtos e estão divididos em duas partes. Nesse momento, estou escrevendo o oitavo. Sei que o nome vai ser Âmbar, e já imagino mais ou menos como começa. De qualquer maneira, tem água no nome porque âmbar é água convertida em pedra.

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