O estabelecimento da industrialização provocou mudanças profundas nas sociedades contemporâneas. Apesar disso, pouco refletimos sobre as histórias por detrás dos produtos introduzidos no nosso cotidiano e menos ainda sobre as relações entre o surgimento desses itens e os problemas sociais e políticos das sociedades que as produziram. Neste texto, exploro a disseminação das propagandas e da comercialização de farinha láctea no Brasil ao longo da segunda metade do século XIX e a articulação desse fenômeno com as transformações nos entendimentos sobre os papéis de gênero, raça e trabalho no período.
Famoso na atualidade, o produto é resultado de uma combinação entre leite de vaca e cereais formulado no ano de 1867 pelo farmacêutico alemão Henri Nestlé, na Suíça. A comercialização do alimento destinado para a amamentação de bebês tornou-se uma das principais responsáveis pelo crescimento do empreendimento que mais tarde se tornaria uma das principais empresas de itens alimentícios do mundo. Rapidamente, as fórmulas industrializadas de amamentação disseminaram-se consideravelmente em regiões como a Europa e os Estados Unidos, por mais que os discursos médicos do período valorizassem a amamentação materna, como aponta a historiadora Maria Helena Machado.
O produto começou a ser importado para o Brasil em 1876. Ao folhear periódicos de alta circulação no período nas cidades de Campinas e Rio de Janeiro, como a Gazeta de Campinas e o Jornal do Comércio, é possível encontrar publicidades recorrentes da farinha láctea, a exemplo das duas imagens abaixo. Ainda que haja um consenso entre as estudiosas e os estudiosos da amamentação e da maternidade de que a popularização desse alimento tenha acontecido ao longo dos primeiros anos da República, a criação, o incentivo ao consumo e a comercialização desse alimento no Brasil do século XIX estavam diretamente relacionados à racialização, às transformações no mundo do trabalho e às mudanças dos entendimentos acerca dos papéis sociais das mulheres expressas através do pensamento médico.
Após ler os anúncios as leitoras e leitores deste artigo devem estar se perguntando: por quais motivos uma propaganda de farinha láctea foi publicada no jornal com a chamada Ama de Leite? Certamente, essa foi uma estratégia para chamar a atenção do público leitor a procura de alguma nutriz a oferecer esse serviço, uma vez que essa profissão era fortemente difundida no Brasil desde o período colonial, como aponta Sandra Koutsoukos. Contudo, ao ler conteúdo da publicidade, o contratante se deparava com acusações e queixas em relação ao preço, qualidade do trabalho e saúde dessas trabalhadoras, fossem elas escravizadas ou livres. E o que isso teria a ver com gênero e raça, já que não há menção direta a essas questões no anúncio?
Com o processo de derrocada da escravidão, o crescimento das campanhas abolicionistas e o aumento do número de homens negros e, principalmente, de mulheres negras livres e libertas, as concepções sobre os papéis sociais femininos estavam em transformação. De acordo com Sandra Graham, as mulheres brancas careciam dos atributos físicos necessários para produzir um tipo de leite que suprisse as necessidades alimentares dos bebês, era o que se acreditava no período colonial. Ao contrário, as mulheres negras escravizadas e “robustas” possuíam as qualidades ideais para produzir o leite adequado. Para a autora, foi a partir da metade do século XIX que imagens divergentes em relação às amas de leite passaram a conviver simultaneamente. Vista anteriormente como uma figura que representava o cuidado e o afeto, a ama de leite tornou-se a representante dos principais vetores de doenças e vícios.
A alteração nos entendimentos sobre a maternidade ressoou diretamente na prática da amamentação e, consequentemente, na utilização da ama de leite negra, trabalhadora comum no mercado de trabalho urbano. O ato de amamentar os próprios filhos passou a ser considerado um dos principais requisitos para a mulher ser considerada uma boa mãe e para os bebês terem a saúde protegida dos vícios morais e traços emocionais inferiores que podiam ser transmitidos pelo leite, de acordo com o pensamento de alguns médicos sanitaristas. Os defensores dessa tese argumentavam que permitir a amamentação dos filhos pelas amas de leite negras era um ato falho, principalmente tratando-se daquelas que passaram pela experiência da escravização, como mostra a historiadora Caroline Carula. Isso porque os aspectos negativos da moral dessas mulheres podiam ser transmitidos, assim como as doenças contagiosas como a sífilis, a sarna, entre outras. De acordo com as recomendações desses profissionais, a amamentação ideal era, prioritariamente, aquela realizada pela progenitora. Caso a primeira opção não fosse possível, era recomendado que se utilizasse a amamentação artificial, servindo-se de produtos como farinha láctea, leite condensado ou colocando a criança para se alimentar diretamente em animais, como as cabras. A última opção era o aleitamento mercenário, aquele realizado pelas amas.
Além desses apontamentos, alguns desses médicos acusavam essas trabalhadoras, assim como as criadas, de serem potenciais provocadoras de “onanismo” nas crianças, ação definida como uma “sensação agradável provocada pelo atrito dos órgãos sexuais” e que, “perversamente”, aquietava os garotos e garotas que ficavam sob os cuidados delas. Ainda se dizia que essas mulheres não possuíam afeto pelos pequenos, devido ao sentimento causado pela necessidade de dividir o leite e o tempo que poderia ser destinado aos próprios rebentos.
A partir dessas elaborações, as concepções higienistas tiveram papel fundamental na configuração de um processo de racialização no qual a moral inferior e a corporeidade degradada eram sistematicamente associadas às trabalhadoras negras, colocando-as em um patamar abaixo em relação às outras mulheres e até mesmo a certos animais. De forma que a publicidade teve um papel importante na consolidação dessas concepções. As propagandas de farinha láctea divulgadas a partir da década de 1870 estavam fundamentadas em um sistema de hierarquias de raça e gênero sobre o qual algumas indústrias elaboraram estratégias de convencimento e comercialização de seus produtos. Além de contribuírem para a desvalorização da humanidade dessas mulheres, essas estratégias impactaram nas experiências das mulheres negras no mercado de trabalho, criando um terreno fértil para o aprofundamento de discriminações raciais, tendo em vista que, nas mesmas páginas nas quais que eram publicados esses anúncios, multiplicavam-se as requisições de trabalho para empregadas domésticas demarcando a preferência pela cor branca.
Assista ao vídeo da historiadora Taina Silva Santos no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF08HI19 (9° ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); e EF08HI20 (9° ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas).
Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento, etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos.)
Taina Silva Santos
Historiadora e mestranda em História Social (IFCH/Unicamp)
E-mail: tainaapss@gmail.com; Instagram: @taina.a.silva.santos
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