Quem foi Miguel Barros (1913-2011), o artista plástico e antirracista apagado da História da Arte no Brasil?

FONTEPor Júlio Ribeiro Xavier, enviado ao Portal Geledés
Miguel Barros, o Mulato (Fonte: Foto/arquivo de família (s/data))

O Brasil possui muitos nomes de destaque nas artes plásticas. Pessoas que entregaram suas vidas à criação e deixaram ricas contribuições para se pensar e admirar a cultura brasileira – mas alguns artistas, apesar do sucesso alcançado em sua época, permanecem em completo esquecimento no cenário artístico nacional e na nossa memória. Esse é o caso do artista plástico Miguel Barros, o Mulato, como ele se intitulava, demarcando seu posicionamento contra o racismo no Brasil. Barros permaneceu por cerca de três décadas sendo destaque de vários periódicos brasileiros no campo das artes plásticas. Apesar dessas evidências, nada ou pouco se conhece sobre a sua trajetória e suas obras.

Miguel Barros nasceu na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 24 de agosto de 1913. Filho de João Moreira Barros e Mercedes Barros, família negra de boa condição financeira – ao contrário de boa parte das famílias negras da cidade –, pois o pai era proprietário de uma fábrica de carimbos. Iniciou sua carreira artística por volta dos 15 anos de idade, estudando na Escola de Belas Artes que funcionava no Conservatório de Música de Pelotas. Foi aluno de grandes nomes da arte como João Fahrion e Leopoldo Gotuzzo.

Além da dedicação às artes, Miguel Barros também possuía um engajamento no combate ao racismo no Brasil. Naquele contexto, ganham espaço os clubes e organizações de negros e negras que buscavam formas de resistência para contrapor-se às armadilhas do processo de exclusão imposto à população negra no Brasil.

Em São Paulo, essa mobilização é fortalecida com a criação da Frente Negra Brasileira (FNB) em 1931. Diante do racismo que permeia a sociedade, essa entidade passa a cumprir esse papel de luta política em defesa da verdadeira cidadania, que permanecia negada após a abolição. Sem demora, a organização vivenciou um rápido avanço, formando-se outras agremiações congêneres nos estados da Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

A Mulata(1947). Barros, o Mulato (Fonte: Foto/José Eduardo B. Cunha(2021))

No Rio Grande do Sul, coube a um grupo de jovens negros da cidade de Pelotas a iniciativa de fundar a Frente Negra Pelotense (FNP), em 1933. Seu objetivo principal era a alfabetização, a educação da comunidade negra e a reivindicação de uma noção de pertencimento, buscando uma identificação negra e com esta a afirmação da sua história.

A FNP também considerava fundamental discutir a discriminação que a população negra sofria em Pelotas. A cidade possuía espaços demarcados onde negros e negras tinham seu acesso negado, no entanto isso era omitido ou ignorado.

No período escravagista, Pelotas tinha como principal atividade econômica as charqueadas: grandes propriedades rurais que processavam carne, couro, ossos e funcionaram entre 1780 e 1910, até entrarem em declínio com a chegada dos frigoríficos que dispensavam o processo de salga da carne. A produção de charque, no período em que utilizava a mão de obra escravizada, propiciou à cidade um grande acúmulo de recursos financeiros. Essa conjuntura possibilitou aos charqueadores intensos investimentos em atividades de cunho cultural na cidade de Pelotas.

A Mulata. Barros, o Mulato (Fonte: revista Carioca, 1947, BN/Hemeroteca)

Após a Abolição, essa população negra passa à condição de classe operária na cidade, onde consolidou uma rede de “associativismo negro”, que já existia durante a escravatura, com a formação das primeiras irmandades negras – que se mantiveram em funcionamento, possibilitando o surgimento de inúmeras associações de recorte racial.

A criação da FNP estava ligada diretamente às aspirações dos editores do jornal A Alvorada. Esse periódico teve uma longa atuação entre a comunidade negra e operária da cidade, tendo sido fundado em 1907 e existindo até meados da década de 1960. A Alvorada possuía um público robusto e fazia permuta com outros periódicos, particularmente com outros veículos da imprensa negra. Na década de 30, chegou a ser o semanário de maior circulação no Rio Grande do Sul.

Como articulista do jornal A Alvorada, assinando como Creoulo Leugim e outros pseudônimos, Miguel Barros escreveu artigos de grande repercussão entre os leitores do periódico que tinha alcance regional. Além de assumir a redação do jornal em 1934, Barros também era responsável pelas atividades culturais de um clube de cultura negra de Pelotas. Ainda em 1934, o artista segue para Recife a fim de participar do I Congresso Afro-Brasileiro, representando a FNP, oportunidade em que realiza exposição de suas obras em Pernambuco.

Na capital pernambucana, em 1936, Miguel Barros, juntamente com Solano Trindade, Ascenso Ferreira e José Vicente Lima, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira.

No seu embate por igualdade racial, em junho de 1935, o artista publica um artigo no jornal Diário de Pernambuco, respondendo às acusações dirigidas às ações da FNB com a suposição de que a mesma era subsidiada pelo governo de Moscou, em referência a antiga União Soviética, que era um país de regime comunista, tendo como objetivo criar um clima de desarmonia entre o povo brasileiro.

Em sua resposta Barros enfatiza a necessidade defender o povo negro:

E que o preconceito do qual se dizem tantos prós e contras é uma questão única, que só pode ser falada por aqueles que realmente o sentem com todas suas restrições humilhantes.[…] e que escritores de mentalidades evoluídas afirmassem elogiosamente o serviço prestado pelo preto, é bem certo, mas não impediu isto que se tirasse da mente brasileira as teorias de Gobineau. (Barros, 1935)

O artista relata os casos de racismo ocorridos na cidade de Pelotas, quando os proprietários de um conhecido teatro e do cinema da cidade vetavam o acesso de pessoas negras em suas dependências:

Sentindo sempre as investidas impatrióticas dos preconceituosos foi que a F.N. Pelotense se organizou e tivemos a par de tantos outros casos, no mesmo teatro anos após a sua fundação, a negação do proprietário, quanto a apresentação em seu palco de um conjunto teatral composto de elementos de cor de Pelotas. Outro proprietário de uma empresa exclusiva de filmes, interrogado por que não permitia negros em seu cinema de luxo, disse que a plateia preferia ter a seu lado uma meretriz branca a um negro ou negra, e se os permitissem ficaria com o cinema vazio […]. (Barros, 1935)

Entre as décadas de 1930 e 1960, Barros realizou inúmeras exposições, fazendo grande sucesso no Brasil e no exterior. O artista percorreu quase todos os estados da federação. Realizou exposições nos Estados Unidos e em alguns países da América Latina. Além de ser noticiado, Barros também escrevia artigos em vários periódicos da época.

Destaque de Barros (Fonte: revista Carioca, 1948, BN/Hemeroteca)

Na década de 1940, na cidade de São Paulo, o artista foi responsável por um espaço dentro da Galeria Itapetininga, que reunia além de seu ateliê, um bar, uma sala de exposição e a livraria Roxy. Durante algum tempo, Barros chegou a compartilhar o local com o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, conhecido como “Clubinho”, que reuniu nomes de peso das artes plásticas, da literatura, da arquitetura e da música brasileira, conforme um artigo jornalístico publicado:

Num canto da Galeria Barão de Itapetininga, protegidos da risada estrondosa de Barros, o Mulato, proprietário da galeria, ficavam os artistas e amigos das artes.[…] (Correio Paulistano, 1952)

Mais do que ser tolerado, Barros foi um transgressor ao frequentar os espaços da requintada elite intelectual paulista que continuava branca.

Apesar de não figurar como integrante da associação, seu nome foi lembrado em um artigo recente que trata da história da agremiação. No entanto, ao ser citado, a publicação desconsidera a relevância de suas obras no contexto das artes plásticas:

Pintor de marinhas, paisagens e tipos populares, Barros, dono da Roxy, era natural de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Não alcançou grande prestígio com a obra pictórica, embora tenha sido citado em alguns dicionários de pintura e artes plásticas[…]. (Marovatto, Quintella, 2020)

Vários periódicos da época, principalmente de São Paulo e Rio de Janeiro, evidenciam que o artista era muito prestigiado:

O festejado pintor patrício Barros, o Mulato, acaba de inaugurar em Buenos Aires uma exposição de seus últimos trabalhos, calcados em motivos essencialmente brasileiros. A mostra de arte, apresentada sob os auspícios da embaixada Brasileira naquele país amigo, está despertando vivo interesse, notadamente nos meios artísticos locais (A Noite, 1940).

Barros, o Mulato, é um dos mais jovens e dos mais brilhantes pintores nacionais. Popularíssimo em todo o País, êle vem se firmando magnificamente dia a dia. Seus quadros são bem vendidos e justificam sua procura e seu indiscutível sucesso nos mais prestigiosos meios artísticos brasileiros. Suas exposições de pintura em qualquer parte em que se realizem são sempre eternos motivos de afluência do “grand monde”, e concorrem no final de tudo para o aumento do “pé de meia” do artista (O Malho, 1943).

Exposição de Barros, o Mulato. Vem de ser inaugurada no Palácio Tocadero, em São Paulo, a exposição permanente de Barros, o Mulato. Perante um grande número de intelectuais, artistas, e figuras de relevo da sociedade paulistana, foi realizada a cerimônia de abertura da mostra, tendo o poeta Maurio de Moraes, pronunciado uma conferência situando o pintor gaúcho do panorama artístico nacional (O Malho, 1949).

Em 1963, Barros escreveu o livro Teoria sem número, que abordava questões teóricas e críticas relacionadas à arte e prosseguindo com a sua carreira fixou residência em uma chácara na cidade de Mogi das Cruzes-SP participando de vários eventos ligados às artes até o seu falecimento em 14 de fevereiro de 2011, aos 98 anos de idade.

A sua inexplicável irrelevância é um dos sintomas de uma sociedade que combina o cinismo e a exclusão no trato com os artistas que não se enquadram no perfil que se deseja para fazer parte do círculo de pintores e pintoras que podem entrar para o hall de pessoas que produziram obras-primas e que merecem ocupar um lugar especial na memória coletiva. Barros foi contemporâneo de vários nomes consagrados nos dicionários da arte brasileira, no entanto, a sua ausência em nossa memória não é um acaso. Pelo contrário, é fruto de práticas intencionais executadas por determinadas sociedades que escolhem o que querem lembrar e o que querem que permaneça no completo esquecimento. Atuam para invalidar e silenciar a existência negra nos diversos espaços e não seria diferente nos espaços artísticos.

Barros, o Mulato, sempre teve um posicionamento firme ao denunciar as práticas discriminatórias no Brasil.

Apesar dos avanços, o racismo brasileiro se mostra persistente e dissimulado, adjetivos que o tornam até os dias de hoje, difícil de ser combatido. É fundamental desconstruir a narrativa da democracia racial e promover uma discussão concreta sobre a situação de exclusão do povo negro na sociedade brasileira e as suas consequências, sentidas até hoje.


Referências:
BARROS, Miguel. Frente Negra. Jornal Diário de Pernambuco, Recife, 20 de junho de 1935, p. 08. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReaderMobile.aspx?bib=029033_11&PagFis=1 039. Acesso em: 25 out. 22.

BENTO, Cida. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
CARVALHO, Luiza Fabiana Neitzke de; SABANY, Darlene Vilanova. Barros, o Mulato: o pintor negro pelotense. Revista Seminário de História da Arte, v. 1, n. 08, 2019.

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KERN, Daniela Pinheiro Machado. Um moderno antimoderno: Barros, o Mulato e a Teoria sem Número. Anais do 42º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Futuros da História da Arte: 50 anos do CBHA, São Paulo: CBHA, n. 42, p. 837-845, 2022 (2023). ISSN: 2236-0719.DOI: https://doi.org/10.54575/cbha.42.066 Disponível em: http://www.cbha.art.br/publicacoes.htm.
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LONER, Beatriz Ana. Negros: Organização e Luta em Pelotas. História em Revista, Pelotas, v. 5, p. 7-27, dez./1999.

MAROVATTO, Mariano; QUINTELLA Pollyana. Clubinho: arte e vida cultural na modernidade paulista. 2020. Disponível em: https://www.centralgaleria.com/noticias/clubinho. Acesso em: 15 dez 23

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periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria.

SABANY, Darlene Vilanova; RODRIGHIERO, Juliana Cavalheiro. História apagada: Barros, o Mulato, o pintor negro de Pelotas. RELACult – Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 6, n. 4, 2020. Disponível em: https://periodicos.claec.org/index.php/relacult/article/view/1763. Acesso em: 24 out. 2022.

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SILVA, Édio Raniere da; XAVIER, Julio Ribeiro. A Arte de Miguel Barros como enfrentamento às políticas de embranquecimento, XXII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (ENABRAPSO), nov 2023, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ.


Julio Ribeiro Xavier – Mestrado em História pela Universidade Federal de Pelotas-RS (UFPEL), licenciatura em História pela Universidade de Cruz Alta-RS, bacharel em Psicologia pela UFPEL, arteterapeuta e artista plástico com ênfase em arte sustentável.


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