Os povos originários e o reverberar da resistência: falas silenciadas e as memórias dolorosas

FONTEPor Marcos Manoel Ferreira, enviado ao Portal Geledés
Foto: Adobe

As vozes, os cantos e os ecos do âmago da floresta, de povos em simbiose com a grande Mãe Natureza, revelando o calvário de uma trajetória de luta e resistência, silenciada e negada, vertida em cascatas de sangue e o vilipêndio de corpos indígenas. Sob os auspícios do progresso estatal e do capital, perpetrada pela catequese, na construção da “Arquitetura da Destruição” do deletério metropolitano europeu, modelo do mundo civilizado e em nome de um projeto catastrófico. O fomento oficial pautado no negacionismo e na amnésia coletiva, latente, covarde, constrangedora, sob a cortina de fumaça das queimadas e da narrativa histórica dos algozes, dos mercenários invasores, com o velacho de cristão e a pecha de heróis. 

A efeméride do Dia 19 de abril, não pode ser circunscrito, exprimido em lampejos de memórias, em datas comemorativas, festivas que não traduzem e não representam absolutamente o que deveriam ser. Parece mais um movimento de piedade histórica, um aceno em demonstração do reconhecimento ou talvez, uma compensação moral, do devido valor cultural e histórico negado aos povos indígenas das Américas, subjugados pela arrogância, a prepotência e a soberba europeia. “Dia do Índio”, que se tornou em eventos circenses — isso não é homenagem, reflexão ou demonstração de respeito —, que insistem em constranger os povos indígenas, povos originários, sua cultura, sua história e sua trajetória de luta e resistência. Manchar a memória desses povos, ignorar tradições milenares, fantasiando crianças, pintando o rosto, usando adereços e trajes, como se ser indígenas, fossem sinônimo de fantasia, chacota, piada ou seres exóticos, os quais, muita gente, chama de “homenagem ao dia do índio”, “programa de índio”. A data, deveria consistir em buscarmos compreender, através de algumas reflexões teóricas, históricas e empíricas, as interfaces, as articulações e disputas de poder, que exterminam esses povos em todas as Américas.   

O etnocentrismo incorrido pelos europeus, que disseminou o etnocídio dos povos indígenas, legado imerso nos massacres obrados por invasores — celebrados como conquistadores, descobridores, desbravadores —, por garimpeiros, por latifundiários, sob o manto do Estado omisso e incompetente, de quem deveria por ofício, protegê-los. Os ruidosos aplausos de parte de uma sociedade hipócrita, miserável e equivocada, com a empáfia covarde e imoral, do discurso moral e religioso, vociferando ódio a esses povos, o extermínio sistemático, desde os primórdios, em que o proselitismo dogmático da catequese, pregava o amor, a igualdade com o livro sagrado em uma mão, e exercia o poder, com a espada na outra. 

É necessário ações de proteção e resgate, com justiça social e o combate a injustiça institucionalizada. Políticas públicas, atentas aos trâmites e os jogos de interesses — econômicos, políticos, culturais — acerca dos debates e do processo de patrimonialização, dos registros, tombamentos históricos, as demarcações de áreas indígenas, quilombolas e sua relevância cultural na preservação dos espaços de memória, manifestas nas tradições populares, monumentos e reservas ambientais. As articulações políticas e burocráticas, as ações do poder público — que deveria ser — em defesa da preservação dos povos indígenas, suas tradições, dar vozes aos gritos históricos silenciados, suas memórias traumáticas e suas terras. A proteção e preservação estatal, às manifestações populares afro-brasileiras, garantindo-lhes o que determina a Constituição, enquanto Patrimônio cultural material e imaterial, símbolos de resistência no combate ao racismo estrutural, a marginalização social, jurídica e a intolerância religiosa.

Perpassando as questões jurídicas, legislações, bem como, a politização das discussões, disputas — que em alguns casos —, resultando em equívocos históricos, os quais, algumas demandas são latentes: que memórias, que patrimônios se pretendem preservar? Quais vozes, se pretendem ouvir ou silenciar, dentro das inúmeras narrativas? 

A compreensão da relevância da preservação do patrimônio cultural, como fruto das necessidades e das ações sociais, suas práticas, que permanecem como respeito, aprendizagem e o combate a amnésia estatal, dos grupos economicamente dominantes, as injustiças e a violência, que historicamente, maculam nossa memória, nas narrativas governamentais, a serviço do capital. 

Os povos indígenas, quilombolas, as minorias vítimas da indigência social, do abandono estatal, da invisibilidade estrutural e os massacres recorrentes, genocídio, etnocídio, na perspectiva do abandono, do negacionismo histórico e de direitos. Paralelamente, “o uso ardiloso do patrimônio para a postergação da emissão de posse e propriedade de terras de quilombolas e indígenas” (CAMPOS, 2019, p. 31). 

Latente, o enredo quase mítico, contudo, covarde, que a construção da narrativa unilateral, revela a face mais cruel de um massacre real, sob os auspícios da benevolência da salvação, do branco cristão e seu paraíso, triunfantes sobre o inferno de corpos insepultos dos povos originários. Uma compreensão da colonização nas Américas, agora, pelos olhos que foram cerrados, pelas vozes que foram silenciadas e pelos povos que foram cerceados de sua verdadeira história, de suas memórias, assassinados em suas terras e parindo uma legião de famintos nas searas da terra da prosperidade, reluzentes pelo mercúrio em garimpos ilegais. Cinco séculos após a invasão europeia, tardiamente, começa de forma lenta e discreta, a sair do papel, as garantias usurpadas dos legítimos filhos e donos da terra. Uma realidade expressa na retórica indígena de Krenak — no contexto das discussões na Assembleia Nacional Constituinte (1987 – 1988), nos debates do artigo 216 sobre o conceito de patrimônio cultural no Brasil.

A cultura, a luta, as tradições dos povos das florestas, originários, são instrumentos de resistência e sintonia com suas raízes, seus ancestrais, cultivados em seus festejos e rituais. Enfrentando o preconceito étnico, a intolerância religiosa, os estigmas de um povo reduzidos por europeus e muitos patriotas brasileiros, como “caricatos, exóticos e preguiçosos”. Explícito no extermínio sistemático de indígenas ao longo da história do Brasil, como por exemplo, o “Massacre do Paralelo 11” em 1963, quando 3.500 indígenas da etnia Cinta Larga, foram assassinados, os Yanomamis, os Pataxós e os Galdinos queimados vivos, etc.

Parte de toda essa tragédia, fomentada pela colonização portuguesa cristã perpetrada pelos europeus, o eurocentrismo, suas influências, seus impactos culturais e religiosos no Brasil, remontam e resultam de todo esse sanguinário processo histórico iniciado a partir do século XVI. Novos elementos que se compuseram e interpuseram as tradições de povos autóctones americanos, indígenas e africanos, constituindo uma diversidade étnica e multicultural. Segundo Aquino (2007, p. 21), são fatores de diferenciação das sociedades americanas, às comunidades indígenas, em si tão diversas em desenvolvimento cultural, vieram juntar-se aos brancos e a grande massa de pretos escravizados retirados da África. O velho e o novo mundo em rota de colisão, a violência dos colonizadores e as missões jesuíticas, que se impuseram por intermédio do sectarismo religioso católico, a catequese assumiu posição de destaque no extermínio físico e cultural dos povos indígenas. Em nome de Deus, a Igreja Católica Apostólica Romana, abriu caminho e um precedente para a dominação política portuguesa e a imposição religiosa da Coroa, acompanhada de aculturação e a submissão dos povos originários, das mais diversas etnias, espalhadas por todo território americano.

A sobrevivência das tradições e crenças indígenas, a pajelança, o catimbó, suas danças, rituais, mantidas e assimiladas em outras manifestações culturais. Por outro lado, essa análise, pode ser compreendida, numa perspectiva inversa. A ação jesuítica, contribuiu para a desintegração da identidade indígena, à medida que a religião e os costumes europeus, foram sendo incorporados, perdendo, simultaneamente, marcas de sua essência e tradições.

No Brasil, as referidas características — diversidade étnica, interculturalidade, pluralidade de culto —, constituíram as tradições populares, a dinâmica entre os sujeitos e as diversas crenças. Os autóctones, outros, oriundos de terras distantes, juntos, resultaram em práticas religiosas simples ou complexas, independentes, fundidas, sincréticas, etc. Lopes (2008), afirma que o sincretismo, em religião, é a fusão, ao acaso, de elementos diferentes e incompatíveis em suas origens e fundamentos. Suas nuances e as conexões estabelecidas, premissas que possibilitam transparência nessas fusões, fundamentos e singularidades.

Portanto, façamos desse 19 de abril, um dia a mais, para refletirmos sobre o que se entende por povos originários, quem são esses 897 mil legítimos indígenas brasileiros de 305 povos e que muitos patriotas de festim, desconhecem, ignoram, atacam e negam! Que a sociedade brasileira, reflita sobre a Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que alterou a Lei no 9.394/1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. E que nesse 19 de abril de 2023, segundo alguns estudos, 71% da rede pública municipal de ensino no Brasil, não há aulas sobre esse assunto. O que evidencia, eviscera o explicito desrespeito, o abandono público, a ignorância e omissão dos órgãos (in)competentes. Resta-nos avaliar se é um negligência, projeto de Estado, incompetência ou cumplicidade. Dia 19 de abril, não há o que comemorar. A melhor forma de lembrar a importância dessa data, a melhor forma de comemorar o respectivo dia, é levar para a escola, para a sociedade em geral, informações e o conhecimento, sobre a origem, a cultura, suas tradições, seus direitos constitucionais, seu legado e o respeito os povos indígenas.  


Marcos Manoel Ferreira, Professor, Pedagogo, Historiador e Escritor. Doutorando pela UFG (Aluno Especial) em Performances Culturais; Mestre em História – Cultura, Religião e Sociedade; Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana; Especializando em Relações Internacionais; Pedagogo com Habilitação em História da Educação Brasileira e Historiador. professormarcosmanoelhist@gmail.com


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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