Racismo na escola: expulso ou acolhido?

FONTEPor Heloisa Pires Lima, enviado ao Portal Geledés
Heloisa Pires Lima (Foto: Renato Parada)

Todos os racismos e, o limite a eles, são respostas da sociedade onde se manifestam. Embora cada caso carregue dinâmicas próprias, em comum há a urgência de sermos, sempre, mais hábeis do que eles. O ocorrido com a mãe Samara Felippo cuja filha sofreu uma pesada agressão na escola coloca, uma vez mais, um turbilhão de argumentos em disputa no espaço público. Isto quer dizer que o ano 2024 apresenta novas camadas sobrepostas ao debate acerca das relações raciais. E, família é família. A da estudante racista, pede desculpas. A da mirada por ele, pede a expulsão da agressora.

Pedir desculpas

E, já que famílias são da ordem do privado, lá em casa é assim. O meu filho escutou a vida inteira que pedir desculpas é importante, mas é 0,01% após a besteira feita. Sem explorar muito as infinitas motivações que levem ao pedido, sempre usei a imagem do copo de cristal. Quebrado por alguém, seja quem for ou com qual intenção, pedir desculpas não resolve o problema do copo estar quebrado. Isto quer dizer que os nossos atos têm consequências. De muitos cacos, até eventual sangue para estancar. Assumir os danos é um princípio para o estar no mundo perceber. E, isto é mais valioso que o mais fino dos cristais.

Mas ok, somos humanos, erramos. O pedido de desculpas pode abrir uma conversa. No entanto, com o alerta para não deslocar o foco principal. O que temos aqui é a hostilidade racista dirigida a uma estudante. No detalhe, o caderno com trabalho escolar foi roubado, rasgado e preenchido com frase racista. A responsabilidade sobre a violência é, mais ou menos reconhecida pela família da agressora, por meio de uma carta dirigida aos pais do 9º ano onde tudo aconteceu. Nela, o destaque é a comunidade afetiva. Em resumo, “somos conhecidos”, “estamos cuidando de nossas dores”, “queremos aprender”. O material ressalta ter a filha já pedido desculpas, “de não haver sido só ela, nem de ser o primeiro caso de violência racial na escola”. A heroína teria tomado a iniciativa de confessar para os pais somando o fato de “nunca ter havido denúncias relacionadas à comportamentos dela”. Eles se dizem surpresos (isto pode acontecer com qualquer família) e se posicionam: “não acreditam em ação punitiva, de justiçamento” E como protagonista do desfecho, o final da carta informa ter a filha “decidido deixar a escola”.

O resumo selecionado aqui, quer destacar que as entrelinhas do pedir desculpas vão se tornando um pedido de apagamento do acontecido. O enredo é uma defesa da filha e, o racismo expresso por ela, perde o foco. E, quando entra, vem associado à ideia “do racismo tá lá fora”, “é estrutural” e vida que segue. Então, desculpe, o não há como responsabilizar alguém por racismo é renovado. Basta procurar o inesquecível histórico para a qualificação de condutas serem tipificadas como racista, no Brasil.

Racismo é crime

Hora então, de lembrar a mais recente Lei 14.532/2023. É a que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo com pena mais severa: reclusão de dois a cinco anos, multa, sem fiança e, imprescritível. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional são limites impostos pela legislação. E Lei existe, justamente, por haver abuso. Embora fundamental, seria ela suficiente para mudanças culturais? De natureza igual, se no passado o bater em mulher ninguém botava a colher, vale notar o quanto o posicionamento em relação à ocorrência mudou, seja na legislação, seja no comportamento, amparos, renovados questionamentos. Enfim, é instância pública na luta por ampliação de cidadania. 

E quando o crime de racismo é praticado por menores de idade? Na régua jurídica o termo utilizado é ato infracional. E nesses tempos de rede, há para considerar que uma agressão, embora simbólica, ela produz materialidade e pode matar. A gravidade com a reverberação operada desde pré-adolescentes é equivalente a entrada de uma arma na escola. Racismo não é brincadeirinha e tem uma escala maior que o bullying. A carga histórica cumulativa dirigida para a coletividade de afro-brasileiros carrega uma eficácia de longa duração sendo muito mais que uma circunstância individualizada. Também, há para considerar o desejo por uma maior equidade nos relacionamentos não ser unanimidade. Em nossos dinamismos culturais temos tanto mudanças progressistas quanto as que não querem alterá-las. São perspectivas que invadem o dentro e o fora da casa alcançando qualquer um. Sobretudo, rodeiam uma nova geração. 

A escola

Meu filho diria que o racismo é uma dor crônica e intermitente para todos os envolvidos. A diferença está em quem realmente decide tratá-la. Por exemplo, qual o protocolo para quando o ato racista surge na escola? Talvez quando começar a onda de fechar estabelecimentos, por racismo, todas as escolas comecem a levar a sério o lidar, de fato com a questão. É preciso agilidade para o preventivo e sobra trabalho para a sala de aula, para pauta com professores, com a comunidade externa, metodologias que impeçam a liberalidades de expressão como na gravidade ocorrida. O enfrentamento passa por limites nítidos ou, pela boa conivência com racismos?   

Nos últimos tempos, eu que visito muitas escolas, noto o interesse fácil dos estudantes ao trazerem os episódios de hostilização de atletas, muitas vezes os seus ídolos, por exemplo. E ele basta para pensar o quanto os ambientes educativos poderiam, no passado, transformar o interesse em aprendizado sobre relações raciais. E, por ignorar acabam ignorantes para a velocidade de temáticas envolvendo esta e outras searas como a de gênero, ódio racial, empatia, equidade na representatividade ofertada, intolerâncias, IA e etc. Não são os temas, mas escancaram princípios educacionais em risco. Outra vez, me foi relatado o relacionamento entre duas estudantes, uma branca curiosa com o cabelo da colega negra. A professora negra, com postura de líder, percebeu e interveio de imediato. Perguntou se havia ali autorização para pegar o cabelo. Tamanha sensibilidade educadora pode estar, diametralmente, relacionada à memórias de sua própria infância. Ou, o treino por quem é presente na produção de conhecimento sobre o quesito cabelo em relacionamentos interraciais. Gostar ou se sentir incomodada? Para intervir é necessário perceber um, eventual, contratempo. Sequer entender esta e outras sensíveis situações envolvendo uma particular humanidade é a rotina das histórias únicas. No cotidiano, adolescentes negras altivas podem incomodar por saberem se defender. Hoje há mais suporte e acolhimento na valorização de uma origem continental africana. “Outrora”, sob valores depreciativos seriam tratadas como metidas, por uma visão que as colocam como fora do lugar. Portanto, se a diversidade enriquece os ambientes, uma educação de excelência já conhece a importância dos bastidores escolares. Não apenas a presença diversa, mas a garantia de espaço formativo constante para troca de pontos de vista. Aliás, o estudo do meio no cenário do racismo manifesto poderia focalizar a própria instituição. Em um espaço saudável, democrático, seria fácil irromper a expressão racista atirando para todo lado? Os educadores e educadoras não perceberam a gravidade em gestação? Luzes, por favor na dimensão discente e docente. Recorrências naturalizadas? Não adiante delegar a matéria apenas para pais interessados. A postura institucional é, nesse momento, a governabilidade aliada à causa. Se fosse meu filho a receber uma agressão, qual o limite nítido definido no contrato de confiabilidade, a garantia e a agilidade no cumprimento do protocolo?   

O portão

O fato é que da porta da casa pra dentro eu posso responder ao racismo com certa pessoalidade. Mas, da porta pra fora lidar com as indignações a ele, vindas da sociedade é inevitável. Não se admite mais a camaradagem com os racismos, estejam eles onde estiverem. A expulsão do racismo, se exemplar, ensina e explicita a demarcação naquele contexto. A escola é o portão que decide sobre o que entra e o que sai como princípios para educar uma nova geração. E há, ainda, algo importante a frisar sobre o momento do aprendizado. Há o da prevenção. Já o ato em si precisa responsabilizar a agressora, os pais na exata proporção do sucedido e, a escola. Os ambientes educativos sempre foram apáticos diante de ataques racistas. E, a mudança é muito lenta. A reeducação passa para a nova escola, em novo momento. E o alvo da agressão, o racismo, da mesma forma, ganha novo patamar de referência na escola atual.    

Não há como recompor um copo estilhaçado. Mas, o que fazer, a partir de então? Eu tenho detectado em escolas que levam o selo antirracista, bons avanços nessa direção. Mas há também retrocessos. O pior deles é instituir o apartheid entre estudantes bolsistas. Ou, então, ao recolocar o assunto junto à gurizada priorizar o tom da identidade afro como perdedora social o que termina em mais constrangimentos. Outro ponto, o “racismo estrutural” não pode se tornar um discurso vazio que transfere o problema para uma instância genérica. Eliminar cultivos de racismo na sala de aula não é da instância privada. O direito a não passar por ataques passa pela escuta, pela troca de pontos de vista, estudos e, principalmente tomadas de decisões educativas. São camadas e mais camadas vivas a fornecer o futuro. 


Heloisa Pires Lima

 Drª em antropologia social, escritora para as infâncias. Atualmente é membro do Conselho da Casa Sueli Carneiro. 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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