Mezzo africano e mezzo afro-brasileiro

Como boa parte das pessoas, em algum momento da minha infância me deparei com a vontade de descobrir de onde vim. Das minhas origens. No meu caso despertou com uma atividade em sala de aula: traçar minha árvore genealógica. Lembro de chegar em casa e descobrir que meus pais não sabiam muita coisa sobre seus avós – meus bisavós no caso. E para eles isso era “normal”, porém, no dia da apresentação em aula me deparei que a normalidade dos meus pais não servia à maioria branca naquela escola particular cristã. Lembro que nesse dia presenciei, pela primeira vez, brancos trocando informações sobre de quais países, regiões e até mesmo cidades vinham seus antepassados. Observei vários coleguinhas narrando anedotas de imigração, descobrindo raízes em comum e contando como mantinham contato com as tradições de seus tataravós…

Por LEOPOLDO DUARTE, do Os Entendidos 

Quase duas décadas depois ainda desconheço o privilégio de ter essa noção de pertencimento histórico, geográfico e cultural. Porém, depois que aprendi que isso se deu porque meus pais são ambos negros, comecei a aceitar que talvez eu jamais preencherei as lacunas não-européias que faltam. Só me restou procurar traços familiares nos rostos das etnias catalogadas por Debret e Rugendas. Nunca tive muita sorte nessa busca, mas sempre encontrei alguém que se parecesse com um tio, uma prima, vizinhos,… Não lembro exatamente quando tive o primeiro contato com esses desenhos, só sei que pra mim é impossível não me procurar neles. Por um tempo foi um passatempo meu procurar no máximo desses retratos possível.

Através daqueles rostos percebi que a minha origem vinha vem do continente africano. Depois de tomada consciência de minha negritude entendi que nãoassumir isso seria corroborar a narrativa que faz parecer que os navios negreiros foram o ponto de partida da minha história e de todos os brasileiros negros como tinha aprendido na escola. Seria concordar com a ideia de que meus antepassados só passaram a ser existir de fato para o mundo depois de absorvidos pelo processo de aculturação subjugação européia.

No entanto, se a história do homem branco chegou às Américas através dos livros, das leis, das instituições etc., as histórias dos povos africanos desembarcaram aqui através de seus corpos. Não nas marcações a ferro e do batismo brancos, mas através de marcações corporais e adornos que os situavam em suas comunidades — presente na maioria dos desenhos daqueles artistas. A África chegou aquiestampada nas escarificações, nas cordas vocais, no tremer dos ombros, no dançar dos pés e quadris, nas batucadas das mãos que também costuravam e trançam, nos ancestrais a serem corporificados e em cada um dos que sobreviviam ao tumbeiro. Por se demarcar também no corpo, não é de surpreender, então, que poucas dessas características sobreviveram fielmente ao pudor higienizanteembranquecedor taxado de pecado e às exigências de empregadores, da “moral” e dos “bons” costumes europeus.

Depois que compreendi o porquê dos meus sobrenomes não ostentarem a minha cor; passei um bom flertando com a minha latinidade. Dizer apenas brasileiro nunca me pareceu suficiente para me situar no espaço-tempo. Entretanto reparei que quando se fala em latinidade se pensa no tango, na rumba, na lambada, a bossa nova etc. E, como tudo, a imagem atual dessas características, apesar das influências negras – da ameríndia e africana -, são de protagonistas brancos. Eurodescendentes. Ou seja, me dei conta de que essa identidade — e toda de berço europeu — reproduz o mesmo mecanismo que possibilitou a desumanização e apagamento dos meus antepasssados.

Sempre tive dificuldade de me conectar ao Brasil. Possivelmente porque nasci e cresci não me vendo na TV, nos jornais, nos filmes, nas histórias de ninar, nos currículos escolares, nem na religião de meus pais (na época) etc. Toda essa ideia de unidos por territórios geográficos na hora do nascimento ainda faz pouco sentido. Sendo este o critério, sempre achei mais fácil me identificar como carioca, suburbano e leonino do que “brasileiro”. Todavia, só recentemente descobri o quanto isso foi dolorido. Agora sigo o conselho de minha mãe quando ficava triste por não ter sido convidado para os aniversários daqueles mesmos coleguinhas e não faço mais questão de querer estar onde não sou bem-vindo. Por isso, uma vez descoberta a glória da filosofia, da literatura, da dramaturgia, da espiritualidade e da estética negras, aprendi o quão fácil é encontrar dignidade e abrigo nas expressões culturais africanas. Cada dia mais me percebo como o homem africano que fui impedido de ser ao longo de gerações.

Ainda não tive cacife para usar turbantes ou sair pintado etnicamente por receio de acabar esvaziando o rolê, contudo admiro e respeito quem já o fez mesmo sem saber a bagagem por trás. É maravilhoso encontrar algo que foi feito exatamente por e para pessoas como nós numa sociedade que prefere nos esquecer da nossa existência. Até porquê, quem vai dizer que, por exemplo, uma armação criada para representar o luto não foi ressignificada na Diáspora para expressar exatamente isso cotidianamente? Que pinturas corporais feitas para a guerra não cabem em espaços públicos onde nossos corpos são os que mais são alvejados por tiros de oficiais do mesmo Estado que ainda nos vê como mercadoria barata? Ou que uma kapulana matrimonial atualmente não sirva para representar amor-própio nesse contexto onde somos a última opção afetiva? O próprio candomblé reune cultos de diferentes povos que só foram dividir o mesmo espaço depois de traficados pra cá.

A realidade é que negros só fomos considerados cidadãos nessas terras três anos após a “”abolição””, e somente 26 anos depois — na constituição de 1934 — o artigo se comprometeu a não mais fazer “(…) distincções, por motivos de nascimentos, sexo, raça, profissões próprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideas políticas”. Um daqueles compromissos típicos dos nossos políticos que muitas estatísticas comprovam justamente o contrário.

Tendo noção dessa treta toda é ótimo saber que a União Africana reconhece negros em Diáspora como a 6a região africana. No entanto, apesar desse reconhecimento internacional, toda vez que me posiciono como homem africano (também) me chega alguém contestando essa minha identidade. Curiosamente, quem contesta nunca problematiza o fato da diáspora judaica ter gerado o estado de Israel. Tampouco li textão acusando de apropriação festivais do tipo Oktoberfest ou festividades nipônicas como as da Liberdade (SP). É particularmente doloroso quando essas acusações vêm de outras pessoas negras. De algumas que compreendem que gênero nada mais é que um conceito culturalmente estabelecido, mas que falham em aceitar que pertencimento à coletividade e patriotismo também. Por outro lado sei suficientemente bem que a recusa a esse pertença tem relações profundas com o mesmo processo que afastou minha família de qualquer tipo de tradição não aprovada pelos antigos sinhôs e sinhás.

Por todo esse percurso, já não me preocupo mais em encontrar rostos parecidos entre os pintados pelos nossos retratistas oficiais e passei a me debruçar sobre o Continente para encontrar meu reflexo. Graças a essas escavações pude encontrar um alicerce livre de toda ardileza que possibilitou a escravização dos meus. A cada nova descoberta me aproximo mais de meus ancestrais e me desfaço um pouco do mal-estar que sempre senti ao utilizar a Europa como único espelho.  Hoje encontro na África toda humanidade que ainda nos é negada aqui. Hoje carrego comigo a responsabilidade de reconstruir em mim todo um continente ainda demonizado esfarelado onde poderia ter sido meu berço.

“Irmão me diz qual é o receio
De saber de onde tu veio
De saber quem você é
Irmão fizeram tu achar feio
Você vir de onde tu veio
Destruíram tua fé”
Thiago Elniño em Diáspora

 

LEOPOLDO DUARTE

O Entendido INSOLENTE. O nosso autor desocupado, frustrado, vitimista, grosso, mal-educado, raivoso, radical, “brancofóbico”, “paranoiracista”, esquerdopata e inúmeros elogios recorrentes nos comentários aos seus textos.
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