Na prática a teoria é outra: as barreiras da sororidade

FONTEPor Bárbara Aparecida Alves Queiroz, enviado para o Portal Geledés

Depois da pizza no jantar de terça, eu corria os olhos pelo cardápio de um site de filmes qualquer decidindo o que assistir, enquanto ao meu lado, minha prima corria os olhos pelo cardápio de rapazes de um site de relacionamentos qualquer decidindo quem escolher. De repente fui desconectada do ócio por um grito dela, que também havia se desconectado do seu próprio, ao ver no cardápio um rosto conhecido: o namorado de uma amiga estava no app.

Quando esse tipo de coisa acontece a gente sempre tenta se enganar e pensar: deve haver algum equívoco. “Talvez depois que eles começaram a namorar ele esqueceu de apagar o perfil, quem sabe ela até saiba que ele ainda aparece nesse negócio” foi a minha primeira resposta. Depois da minha prima curtir o perfil do dito cujo e os dois combinarem, no entanto, todas as justificativas e qualquer crédito existente já não existiam mais. Estava consumado, não havia mais o que fazer. Na verdade, havia sim: contar a minha amiga. Foi aí que a polêmica toda começou.

Minha prima já havia puxado assunto com minha amiga, quando minha tia interveio aos berros pedindo para que não, nada deveria ser dito. “nós não sabemos quem é o rapaz, a família dela também não é de brincar, melhor deixar quieto. Os pais dela devem estar de olho nesse cara, possivelmente vão saber de algo logo” foram alguns dos argumentos usados por ela. Enquanto minha prima insistia explicando que ela deveria saber e que ninguém devia ser enganado assim, me peguei pensando quantas vezes não fiz o papel da minha tia na história, quantas outras mulheres não faziam diariamente.

Me recordei de uma moça que namorava um rapaz da faculdade que a traía diversas vezes e o campus todo tinha conhecimento, mas ninguém nunca se dispôs a conversar com a moça sobre o assunto. Já me deparei com namorados de amigas minhas em sites de relacionamento diversas vezes, mas nunca me sujeitei a contar a nenhuma delas. Havia na minha cidade natal um antigo caso de violência doméstica que embora fosse escancarado para a cidade toda, nunca fora denunciado. Não sei se todas essas situações perpassam o campo da violência de gênero, mas acredito que de alguma forma todas elas são uma violência entre o gênero. De nós para nós.

Não raras as vezes em que nós mulheres nos sujeitamos ao papel de cumplice em diversos casos como esses citados acima, com o argumento de que “a vida do outro não me diz respeito.” Errado. Diz sim. Diz porque muitos casos começam como o da minha amiga, com um perfil em aplicativo de relacionamentos, e terminam em violência psicológica, em agressões verbais, físicas, em assassinato. Até virarmos estatística. Mais um número. O caso da minha amiga me fez pensar em quantas sequelas poderiam ser amenizadas, quantas agressões poderiam ser evitadas, quantos homicídios poderíamos impedir, ao enxergamos que em alguns casos, a vida do outro, a vida dA outrA me diz respeito sim.

Pensei nas barreiras da sororidade. Junto com o preconceito, com o conservadorismo e com o machismo, o “não me interessa” forma o combo perfeito. Muitos dos casos relatados acima eram de conhecimento de muitas mulheres – inclusive de mulheres que se consideram feministas como eu – no entanto nenhuma de nós teve coragem de se manifestar em apoio as manas que precisavam de nós naquele momento. A luta pelos direitos das mulheres é importante e necessária em diversos segmentos, mas não basta que seja apenas teórica, é preciso – extremamente preciso – que a coloquemos em prática. Não basta que seja grande e glorioso, é preciso que o feminismo chegue a lugares pequenos, a mulheres carentes e e desinformadas, a situações “corriqueiras” de traição e a cenários maiores e mais perigosos de violência.

A noite de terça começou em pizza, mas terminou com gostinho amargo de “devia ter feito mais.” Gosto de pensar que esse não é o único sabor possível para nós. Existem outras opções. Cabe ter estômago – e peito – para encara-las. O que falta é coragem. Que a tenhamos. A coragem é feminina.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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