“Não, não sou angolana.”

FONTETanya Saunders, enviado para o Portal Geledés

25 de abril de 2012

 

Notas de viagem

Hoje no correio, onde fui fazer o pedido de um CPF, perguntei se estava no lugar certo para fazer a inscrição. 

“- Você é angolana?!”, fui questionada pelo funcionário dos correios” – o qual seria classificado como negro nos EUA, mas não no Brasil.

Respondi em seguida, “-Não, não sou angolana.”

Entreguei a ele uma cópia impressa de minha inscrição online que continha todas as minhas informações. Endereço no Brasil, cidadania etc.

Atendente do Correios: “-Ok. Bom, você precisa de um passaporte oficial [repete várias vezes], tem que pegar uma carta da Polícia Federal (imigração), uma carta de alguém que informe sua estadia aqui e uma conta de telefone ou luz.”

Eu: “-Em primeiro lugar, eu não consigo ter uma conta de luz sem ter CPF, e não, não preciso de todas essas informações. Eu só preciso de um passaporte. Além disso, por que você fica repetindo que preciso de um passaporte original? Preciso ter um passaporte original para entrar no país quando sou proveniente dos EUA, se não tivesse não teria embarcado.”

Atendente do Correios: “-Bom, pegue uma conta da pessoa com quem você está hospedado. Você tem um passaporte original?’

Eu: “-Oh, você está certo. Deixei meu passaporte original nos Estados Unidos. Eu só tenho meu passaporte falso comigo.”

Carteiro: “Bom, vai ter de ir à Embaixada de Angola e pedir o passaporte original.~”

Eu: “-Tá falando sério?”

Atendente do Correios: “-Sim.”

Eu: “-Eu estava sendo sarcástica. O que você está dizendo está errado e não preciso de nenhum desses documentos. Qualquer estrangeiro pode solicitar o CPF com passaporte. Esse é o conhecimento básico. Qualquer pessoa que tenha que ficar aqui por algumas semanas pode descobrir que é isso que você precisa para obter um, está em todos os sites da internet.”

Atendente do Correios: “-Bom, é disso que você precisa.”

Eu: “-Bom, eu não tenho um endereço aqui. Eu moro em um hotel”. [lembre-se de que entreguei a ele uma cópia oficial de um formulário impresso que ele tem em mãos, que é uma certificação do meu endereço privado – que na verdade não é um hotel].

Atendente do Correios: “-Ah. Hum. Bom, venha comigo.”

Então eu vou para o fundo da agência do Correios e ele me apresenta à chefe da unidade, que é uma mulher negra. Entrego a ela os papéis e meu passaporte. Ela olha para eles e diz: “-Ok, por que vocês estão aqui?”

Eu: “-Não sei. O cara fala que eu tenho que pegar uma carta da imigração, uma carta convite de alguém que mora no Brasil, e eu tenho que trazer uma conta de telefone – que eu não tenho porque preciso de um CPF para conseguir uma conta de telefone bla bla bla.”

Irritada, ela se levanta e sai para a agência.

Chefe: “-Quem está ajudado-a?”

Funcionários do Correios: “-Não estamos lhe ajudando. O outro atendente estava ajudando-a. Ele saiu por um segundo. Mas ela não tem passaporte angolano válido, então não pudemos ajudá-la.”

Enquanto isso, o atendente retorna e tenta defender sua causa.

Chefe: “-Aff! O que você quer dizer ao afirmar que ela não tem um passaporte angolano válido? Ela é americana! Você pode ouvir o sotaque dela?”

Atendente do Correio: “-Mas ela tem que trazer o comprovante de endereço.”

Chefe: “-Do que você está falando? Ela só precisa escrever um endereço para que o governo possa enviar seus documentos do CPF, e ela tem um endereço aqui em seu formulário, o que você me entregou. Você ao menos olhou para ela? E você ao menos olhou o passaporte, é um passaporte original! Você deveria apenas ter pedido o passaporte dela. Se você tivesse pedido o passaporte dela, que é tudo o que é necessário, você teria visto isso”.

Ela apontou meu passaporte, folheou-o mostrando os inúmeros vistos de vários países diferentes e páginas cheias de carimbos de entrada e saída … o que a irritou mais porque destacou a validade óbvia do passaporte e a estupidez da situação.

Chefe: “-Todos vocês me ouvem. Qualquer estrangeiro que venha aqui só precisa do passaporte. É isso.”

Chefe (em direção ao funcionário que iniciou meu atendimento): “-Você, preencha o formulário dela”.

Chefe (em direção a mim): “-Sinto muito por isso, querida.”

Então eu prossegui o meu dia e fui até a praia. E, sim!, essa história fica ainda melhor, kkkk. Eu me sento em um quiosque para tomar uma coca. O cara atrás do balcão (novamente seria classificado como branco no Brasil e como uma pessoa de cor nos Estados Unidos) – diz: – “Então! Você é de Angola, não é ?!”

Eu: “-Não, não sou de Angola. Por que você acha que eu sou angolana? Eu mal falo português”.

Houve outros momentos em que isso aconteceu e eu perguntei às pessoas, porque angolana, e frequentemente elas diziam: é porque falas português “errado…”

Cara do quiosque: “-De onde você é?”

Eu: “-Adivinhe.”

Fiel à forma, ele adivinha todos os países do continente africano ou da América Latina.

Eu: “-americana”.

Descrença usual, seguida pelo processamento mental visível, e depois por um sorriso estranho enquanto ele tenta me imaginar como uma pessoa dos EUA.

Eu: “-Então, por que todo mundo acha que sou angolana? As mulheres angolanas sempre vêm aqui com dreadlocks?”

Ele ri.

Cara do quiosque: “-Não, eu nunca conheci nenhum com dreadlocks”.

Lembre-se de que os dreadlocks em uma mulher negra são uma raridade séria no Brasil. Eu vi apenas quatro mulheres negras (incluindo eu) com dreadlocks.

Eu: Bem, se os dreadlocks não são típicos das mulheres angolanas, então por que as pessoas presumem que sou angolana?

Ele ri.

Cara do quiosque: Oh, é porque você é negra.

Acho que esse comentário finalmente resolve o “mistério”. Naquele momento, percebi que o que é mais interessante no Brasil é que as pessoas que me acham angolana, africana ou latina – mesmo quando falo com elas em inglês, têm sido pessoas que não são negras  e nem brancas – e lutam para tentar processar o fato de que eu sou dos Estados Unidos. Mas ainda não tive essa experiência com os negros. Ao sair do Quiosque, percebi que precisava voltar às minhas anotações de campo, apenas para comparar outras experiências sobre as quais escrevi. Eu me perguntei se isso realmente era um padrão. E se sim, o que isso significa?

Então fui para minha última parada antes de ir para casa: adquirir um carrinho para fazer compras. Encontrei um e caminhei até a caixa registradora. A caixa era uma mulher negra de 20 e poucos anos. Eu não disse nada. Entreguei a ela duas notas de R $50,00 para pagar o carrinho. Ela ergueu uma das notas de R $50 e perguntou em inglês: “Você tem algo menor?”

Eu sorri e disse não. Então perguntei a ela: “Como você sabe que sou americana?” Ela respondeu: “Bem, você está vestida como um. É meio óbvio.”

 

Hmph …

A campanha “13 de Maio: Comemorar o quê?” é uma iniciativa de colaboração entre US Network for Democracy in Brazil, Geledés Instituto da Mulher Negra e Afro-Brazilian Alliance (ABA) e tem como objetivo reafirmar a data da abolição da escravatura no Brasil como Dia Nacional de Luta contra o Racismo, como demarcado pelo movimento negro, já que a Lei Áurea não garantiu o pleno acesso aos direitos e à igualdade para a população negra – a qual vem enfrentando profundas desigualdades desde então.

Tanya Saunders é PhD em Sociologia pela Universidade de Michigan e Professora de Estudos Latino Americanos da Universidade da Flórida. Suas pesquisas buscam discutir as maneiras como a diáspora africana nas Américas usa as artes como uma ferramenta para a mudança social. Os temas de seu interesse são raça, gênero, sexualidade e movimentos sociais que se articulam por meio das artes.

 

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