Não sou carro pra ser rodada

Há muito tempo ouvi dizer que “fulana é rodada”, “aquela já tem alguns quilômetros”, “aquela é de terceira mão” e por aí vai. Sempre achei um termo ignorante e machista , mas nunca esperei que um dia chegasse a ouvir isso sobre mim. Só que é aquela coisa né? Sempre tem uma primeira vez pra tudo e hoje foi a minha.

Por  no Lugar de Mulher 

Já tem um tempo que eu conversava com um carinha onde trabalho, nada de mais, sem intenção. Sempre almoçamos no mesmo horário e acabamos pegando uma “amizade de mesa” como eu gosto de chamar.

Hoje, como de costume, ele reservou um espaço para mim e eu o acompanhei no almoço, quando o assunto – sabe Deus como – foi parar em relacionamentos. Então falamos que hoje em dia é difícil encontrar alguém confiável (ele sofreu um golpe de alguns mil reais da ex-namorada), alguém que esteja disposto a se divertir em um relacionamento sem ficar sufocando a liberdade alheia, pessoas que querem mandar na vida do outro, etc. Quando eu disse que é complicado também encontrar alguém que tope namorar uma mãe solteira, especialmente que não queira mais filhos, veio a bomba.

“Sabe o que é? É que mãe solteira tem aquela fama de rodada.”

Ele deve ter dito mais alguma coisa que não ouvi por causa do baque que levei. Um homem formado, com um cargo razoável, falando uma babaquice dessas. Na hora a minha cara deve ter sido muito assustadora, porque ele arrumou a postura e pediu desculpas.

“Por favor, não se ofenda. É só o pensamento da maioria dos homens”

Na hora eu não tive reação a não ser pedir para ele parar de falar. Teve um silêncio daqueles mortais e eu disse delicadamente:

“Sabe, eu acho incrível como as pessoas nos surpreendem. Você diz que é o pensamento da maioria dos homens, mas eu não me lembro de tantos homens falando isso desde os anos 90. Eu não me ofendi porque, na boa, você não conhece nada da minha vida para saber o que eu passei ou não e mesmo se eu fosse ‘rodada’ isso não muda meu caráter e minhas qualidades. Já a minha visão sobre você mudou drasticamente neste exato momento. Se me der licença, vou ficar sozinha hoje.”

Me levantei, ele baixou a cabeça e eu terminei meu almoço (empurrado) sozinha. Quando fui pagar ele ficou atrás de mim e soltou um “me desculpe” baixinho e eu só acenei com a cabeça, mas permanecemos em silêncio nos respeitando.

Subi, sentei no meu computador e comecei a pensar, ainda catatônica, no quanto aquilo me doeu.

Tudo o que já foi dito, toda a luta diária para conseguir nossos direitos, para termos igualdade sem que ninguém nos julgue, para que um cara qualquer venha do nada e suponha que eu, por ser mãe solteira, já tenha transado com metade da cidade? E mesmo se tivesse, isso lhe daria o direito de me julgar e de me chamar de “rodada” como se eu fosse um carro velho que teve “vários donos”? Não! Claro que não! Já não basta ser discriminada, ser taxada de tudo quanto é nome, ainda me vem gente ignorante querendo verificar a minha quilometragem.

Mulher não é palmito para estar “conservada”. Mulher não é carro para estar “rodada”. Mulher não é cédula para ter “passado na mão de muita gente”. Mulher é gente, mulher é livre, mulher pode namorar com quem quiser, transar com quem quiser, se recusar se quiser. Mulher é ser humano e não um objeto para ser rotulado. Sou mulher e exijo respeito. Se quiser alguém “zero km” compra um carro e deixa as mina em paz!

 

 

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