O Plano de Proteção à Liberdade Religiosa empacou. Outra liberdade fica para trás: a de consciência
Propor um Plano Nacional de Proteção à Liberdade Religiosa enfatizando religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda é iniciativa importante. Chamam a atenção críticas dos próprios interessados indicando fragilidades e limites do plano porque seu lançamento não foi frustrado por esses limites, mas pelo que seriam suas “ousadias”, ao reconhecer direitos dessas minorias religiosas.
O noticiário procura destacar a relação de católicos e evangélicos com o povo de santo. Seriam os dois grupos politicamente influentes, aos quais o governo estaria atento e pelos quais recuaria. Haveria essa simetria de influência? Poderiam as religiões ter tanta presença na arena do Estado?
A laicidade do Estado é princípio constitucional no Brasil. É Estado que se estrutura como esfera genuinamente humana, na qual decisões dependem de seres humanos, com autonomia do poder temporal, observada a separação de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), e os direitos são de cada cidadão. No Estado laico estão claramente separadas a esfera política e a vida religiosa, não se confundindo as respectivas fontes de autoridade nem se imiscuindo uma na outra. É o princípio da laicidade que garante a liberdade de consciência, de crença e de culto a cada e todo cidadão ou cidadã, contando o Estado com meios legais para dar essa garantia.
Nesse Estado, é a mutação do poder autônomo que, por ser laico e democrático, pode promover alterações que sejam necessárias, de acordo com as mutáveis condições humanas, que são comuns a todos, independentemente de fé. Alterações do ordenamento jurídico serão ditadas pela possibilidade de serem invocadas por todos, sem embaraçar o exercício do direito à liberdade de consciência, de crença e de culto de qualquer cidadão ou cidadã. As religiões devem reconhecer o limite de sua orientação sobre seus adeptos, que contarão igualmente com o Estado, e assim poderão escolher o que sua consciência ditar, arcando com as responsabilidades inerentes a sua escolha. Por isso, tudo o que promova o respeito e proteja da intolerância os diferentes grupos de consciência (como os ateus), de crença e de culto, coletiva e individualmente, promoverá o Estado democrático de direito, o que torna relevante um plano como o que se colocou em questão.
Já o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, ao tratar da questão dos símbolos religiosos em estabelecimentos públicos, também se liga à laicidade do Estado. Um crucifixo em um tribunal ou escola pública distingue exclusivamente a fé católica, deixando todas as demais formas de crer e não crer ao abandono, desprezo e humilhação. Impõe um sistema específico de valores por sobre os próprios valores decididos pela cidadania, criando constrangimentos. Por que, então, a reação católica ao 3º PNDH?
Sendo um país marcado pela pluralidade religiosa e de consciência, há a considerar, com a laicidade, a relação entre maioria e minorias. Há os que invocam a maioria como critério único, como se isso caracterizasse a democracia, mas há limites à “regra da maioria” no jogo democrático. Um dos “procedimentos universais” das democracias exige, segundo Bobbio, que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições”. Celso Lafer afirma que declarações internacionais “protegem os que não estão no poder e os mais débeis”, que não são maioria, sendo por isso incorporadas aos ordenamentos nacionais. Bovero ressalta que “(…) a mera e simples imposição da vontade da maioria não é democracia”, podendo degenerar em autocracia.
As críticas aos avanços históricos do 3º PNDH, em particular as que se ligam à temática do Estado laico, situam-se no âmbito de argumentos em prol da maioria que desprezam minorias. Talvez pela mesma razão, essas críticas ignoram não apenas a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como mais de seis décadas de construção coletiva, em âmbito mundial, de instrumentos internacionais que criaram novos patamares para a consciência humana com relação a direitos e deveres, tornando vergonhosas as argumentações que renegam conquistas, fruto de consenso entre diferentes correntes políticas, no Brasil, entendidas como mínimos de atendimento universal – cabendo depois a cada qual valer-se ou não do direito estabelecido, segundo a orientação religiosa de cada um.
Mas esse imbróglio, complementado com a Lei Geral das Religiões tramitando no Senado, é parte de um preço que o governo federal apenas começa a pagar por ter assinado uma concordata, inconstitucional, para aplacar as pressões da Santa Sé. Ao violar a laicidade do Estado, pressionando, junto com a entidade interessada, tanto parlamentares quanto setores da sociedade tradicionalmente críticos, abriu uma brecha, pela violação, que celeremente se volta contra ele, demonstrando o mal que fez à Nação, a si próprio e a sua candidata, que apenas pretendia promover.
*Professora da Pós-Graduação em Educação da USP e da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista, onde lidera o Núcleo de Educação em Direitos Humanos. Coordena pesquisas sobre Estado laico apoiadas pelo CNPq e pela Fapesp. Autora do livro Estado Laico (Memorial da América Latina)
Fonte: Írohín