Notas de Rodapé – Paixonar-se

por Fernanda Pompeu

Foi a paixão pela eletrônica que levou Stphen Wozniak a conseguir pela primeira vez na história digitar letras num teclado e vê-las aparecer numa tela. Foi a paixão por um Brasil comunista que fez Carlos Marighella arriscar liberdade e vida e acabar sendo assassinado em uma rua de São Paulo. A paixão por perguntas fez Clarice Lispector criar Macabéa e uma galinha. A paixão pela superação fez Marina Silva, alfabetizada aos dezesseis anos, se tornar ministra de Estado e candidata à presidência da República.

Muitos vivem a paixão de mudar o mundo das coisas ou das ideias. Alguns se dão bem. Tornam-se ricos ou famosos ou respeitados. Ou as três venturas juntas. Outros morrem anônimos, ou solitários ou esquecidos. Ou as três injustiças juntas. Então, paixão não garante nada, além do entusiasmo e da energia maluca que ela desperta.

Há paixões coletivas. Os portugueses do século XVI se apaixonaram pela navegação. A ponto de Fernando Pessoa poetar que o mar era português. Os estudantes em 1968 se apaixonaram pela imaginação no poder. Os candidatos a escritores, no século passado, se apaixonaram por Paris. A maioria deles sonhou que se lá vivessem, escreveriam o que não conseguiram escrever na Vila Madalena, em Boa Viagem ou no Leblon.

Apaixonados são aficionados. Podem criar fã-clubes, partidos, ongs. Ler tudo sobre um único assunto. Assistir a todos os filmes de Godard. Saber a novena inteira do santo de estima. Passar a vida colecionando selos ou recolhendo conchinhas em cada praia que pisam. Podem perder todo salário no bingo. Podem gastar infinidades de domingos encerrando um karmanguia azul.

Lembremos dos que rompem com mulher e filhos para pescar todos os fins de semana. Mulheres que desistem de casamentos com o objetivo de guardar dinheiro para a coleção de pares de sapatos. Velhos que se esquivam dos amigos para deixarem-se dezoito horas em frente à TV. Crianças que roubam dinheiro dos pais para comprar figurinhas de dinossauros. O que é tudo isso se não paixão?

Um amigo meu abandou a Escola Politécnica da Usp para ser músico em bares noturnos. Minha vizinha largou o emprego na Bolsa de Valores, Mercadoria e Futuro, vendeu a casa com tudo que havia dentro, rifou o carro do ano com câmbio automático, e se mandou para Trancoso no sul da Bahia. Uma conceituada psicanalista rasgou a carteira de clientes neuróticos e foi assar arepas em Bogotá. O que é tudo isso se não paixão?

Meu tio Walter, morto em julho deste ano, era apaixonado pelo Flamengo. Tinha chaveiros, cinzeiros, flâmulas, canecas, canetas, camisetas com o brasão rubro-negro. Quando pressentiu o fim, foi no cartório e deixou por escrito a última paixão: que suas cinzas fossem jogadas no campo do time do coração. Sua filha Wânia enganou o segurança e cumpriu o desejo do pai.

Qual a minha paixão? Não é mudar o mundo. Não é inventar a máquina perfeita. Não é apostar nos cavalos do Jockey Clube. Não é cultivar um jardim. Minha loucura é colecionar lápis. Tenho de todos os tipos. Redondos, sextavados. Lisos, engruvinhados. De todas as cores. Pretos, brancos, lilases. Com nomes de museus, açougues, hotéis. De madeira comum e de madeira certificada. Essa paixão começou aos seis anos e segue até hoje.

Fernanda Pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

Fonte: Notas de Rodapé

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