Nova geração de drag queens discute a questão dos gêneros e protagoniza websérie

Uma das mais famosas drag queens dos anos 90, RuPaul Charles voltou a ser pop no Brasil desde que a Netflix começou a exibir aqui as seis temporadas de seu reality show, “RuPaul’s Drag Race”, um concurso para descobrir a “America’s next drag superstar”. O aumento da popularidade do programa no país revelou, ou melhor, botou em foco, uma nova geração de drag queens cariocas. Com idade entre 19 e 28 anos, estes performers estão renovando a cultura drag a partir de novos códigos visuais que incluem barba, pinturas corporais inspiradas no grafite e discurso que questiona o modelo feminino perseguido por outras gerações.

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no Globo enviado por Aretha Sadick para o Portal Geledés

— Depois que o RuPaul foi para o Netflix, a drag ficou mais popular — observa a cientista social e diretora Bia Medeiros.

— O programa do RuPaul acrescentou muito na divulgação desta cultura. Mas o boom das redes sociais também contribuiu — acrescenta Caio Riscado, integrante do grupo de teatro Miúda e doutorando em criação colaborativa com foco no estudo dos gêneros não-binários (além do feminino e do masculino).

Instagram e Facebook documentam a nova geração de drags que surgiu na noite carioca. Festas como V de Viadão, promovida pelo DJ Edu Castelo, e a Rebola, em boates como a La Cueva, em Copacabana, e a La Paz, na Lapa, apresentam estas novas personagens da cidade, que estrelam nosso editorial de moda da capa. Aretha Sadick, 25 anos, tem formação em Teatro, está terminando a faculdade de Moda e trabalha no CCBB. Alma Negrot, 19 anos, é de Gramado (RS), chegou há três semanas ao Rio e pinta seu rosto e corpo como tela de street art. Pandora Yumê, 25 anos, tem uma estética de rock decadente e faz questão de manter a barba e os pelos das axilas. E Aurora Boreallis, 24, mantém a tradição das drags, com sua caracterização mais próxima de uma diva pop.

Fernando Cozendey-Casa de Criadores – Verão 2016 – abril/2015
Foto: Marcelo Soubhia/ Agência Fotosite

— Estas festas impulsionaram uma liberdade maior no agir e vestir. A pessoa vê alguém de barba e vestido nas redes sociais e percebe que também pode se vestir de maneira camaleônica — diz Bia, que está filmando a websérie documental “Drag-se”, com incentivo da RioFilme.

Dona de uma produtora de documentários e estudiosa de questões como caracterização de gêneros não-binários e orientação sexual, Bia irá mostrar em dez episódios que serão exibidos num canal drag no Youtube (criado por ela) um dia na vida de 12 drag queens e 1 drag king (mulher que se caracteriza de homem).

— Existe uma diversidade grande no movimento. Entre as personagens que selecionamos, tem uma que trabalha nos Correios, outra na Câmara de Vereadores. Mostraremos o que elas fazem além de se vestir para uma festa. A cultura drag ainda é marginalizada, embora algumas pessoas hoje em dia comecem a fazer drag e se surpreendam com a boa aceitação. Mas esse fenômeno de crescimento é muito restrito — pontua Bia.

As quatro modelos da nossa edição também estarão na websérie e, hoje, no fim da tarde, vão à pocket edition da V de Viadão, na Praia do Leme.

— A drag queen é um homem que se traveste de mulher em performance. Mas a caracterização de parte desta nova geração, que tem barba e vestido, por exemplo, questiona a construção social do modelo feminino tradicional ao transitar entre os dois gêneros sem se restringir a um só deles. O interessante é que elas estão fazendo drag para assumir que o gênero é uma construção social e para romper com o padrão binário, que divide a sociedade entre feminino e masculino — descreve Caio.

GÓTICA, GLAM E TRASH

A barba cuidadosamente aparada se mistura ao glitter que faz as vezes de pinta, ao piercing no nariz e ao batom preto. Pandora Yumê — ou Gabriel de La Torre — define sua estética como gótica trash. Tem ascendência chilena e peruana e aprendeu com a mãe a gostar de rock. Era fã de Marilyn Manson e David Bowie.

— Sempre fui interessado em glam rock e androginia. O Manson é praticamente uma drag queen — diz Pandora.

Nascido e criado em Copacabana, começou a caprichar nos looks para ir a festas aos 20 anos. Quando “ficava muito louco”, brincava dizendo que “baixou a Pandora em mim”.

Foi aos 22, depois de trabalhar como garçom na Comuna, em Botafogo, que propôs aos sócios do coletivo que começasse a trabalhar vestido de drag queen. Assim surgiu Pandora Yumê, o trabalho como hostess e a militância cultural.

— Queria propor a desconstrução de gênero. A drag queen clássica é a que se veste de plumas e paetês. Meu glamour é mais alternativo. A minha ideia é questionar os modelos tradicionais de feminino e masculino. Por isso, faço questão de manter a barba, porque ela é um símbolo — conta Pandora, que é inspirada em ícones como a pin-up Bettie Page e “Elvira, a rainha das trevas”

Pandora produz o evento Drag Attack, uma ocupação/festa/mesa-redonda, em que convidava as pessoas a se “montarem”, desconstruindo o gênero binário.

PERFORMANCE CONCEITUAL E DISCURSO POLITIZADO

De dia, Robson Rozza trabalha como arte-educador no CCBB. À noite, estuda Moda na Cândido Mendes. E quase de madrugada, nas festas, surge como Aretha Sadick, uma drag queen que tem nome inspirado na cantora Aretha Franklin e visual sado-masô que lembra o videoclipe “Human nature”, de Madonna.

Nascido e criado em Caxias, Robson foi eleito Miss Gay Rio de Janeiro em 2011 e ficou entre os finalistas na etapa nacional. Em 2012, foi para Londres como ator e designer para participar do Rio Occupation durante as Olimpíadas. Ficou impactado com a cena gay londrina.

— Quando voltei ao Rio, fiquei decepcionado. A noite era limitada para drags. Ou você batia cabelo ou se enchia de Swarovski — lembra Robson, 25 anos.

Em 2014, ele foi à festa Rebola como Aretha Sadick. Assim surgiu sua drag politizada. Uma figura forte e desconcertante.

— Comecei a ver esses meninos maravilhosos desta nova geração trazendo uma superdiscussão sobre gêneros e comecei a desenvolver meu trabalho. Entre o X e o Y existe uma porrada de coisas que somos nós! Acho importante ter um discurso. Tenho um papel de militância e acabei incorporando também a causa da mulher negra.

Entre suas performances, com base em teóricos como a americana Judith Butler, que estuda a lógica dos gêneros não-binários, está “Esta não sou eu”. Na apresentação, Aretha caminha entre os convidados de uma festa com um cigarro na mão e vai queimando aos poucos páginas de revistas de moda como a “Vogue”. Ela também está documentando em foto e vídeo sua presença nas festas e na cidade. E, sim, também dubla Whitney Houston e Christina Aguilera.

— Quero fazer Grace Jones.

 

ECO DRAG COM BODY DE SACO DE LIXO

Aos 19 anos, Alma Negrot é novidade entre as drags cariocas. Chegou ao Rio há três semanas e impressiona com o make inspirado na street art. A personagem, uma espécie de entidade abstrata sem sexo definido, veste basicamente os desenhos que ela mesma faz no rosto e no corpo com tinta acrílica fosca, caneta, colagem de papel e maquiagem. O resto é reciclagem, com figurinos ecologicamente corretos feitos com materiais reutilizados.

— Meu visual sempre foi de lixo. Posso pegar um saco e fazer dele um body. Algo como uma eco drag — diz.

Rapha Jacques nasceu em Gramado (RS). Fugiu de casa aos 15 anos, percorreu o Brasil de carona e foi trabalhar como barman, aos 18 anos, numa sauna gay em Porto Alegre. Lá viu pela primeira vez um show de drag queens clássico. Dublagens, cílios postiços, vestidos bordados e plataformas metalizadas.

— As drags da sauna eram bem plumas e paetês. Fiquei encantado, mas queria fazer algo diferente. Queria chocar, misturar belezas e trazer à tona novas possibilidades de existir. — comenta.

Ele decidiu, então, criar a personagem Alma Negrot, fazendo do próprio corpo a plataforma para sua arte: a pintura e os desenhos. A personagem tem página no Facebook, onde descreve: “Alma surge como uma intervenção política, que vem dessa necessidade de falar o que estava preso dentro de um corpo, da insatisfação de ser uma coisa só, de um posicionamento contra a obrigatoriedade dos gêneros. Ser homem ou mulher?”

— Tento levar a perfomance para além das festas privadas. Eu me apresento também em locais públicos, nas ruas — conta Rapha, artista plástico e visual.

Em 2014, Caio de Azevedo Castro foi à Noruega pela primeira vez e viu a Aurora Boreal. A experiência foi tão impactante que, no ano seguinte, ao decidir fazer drag queen (elas usam o verbo fazer, e não ser, por se tratar de uma performance) escolheu o nome artístico Aurora Boreallis.

AOS 8 ANOS, DUBLAGEM DE WHITNEY HOUSTON

Aos 24 anos, estudante de Arquitetura da Universidade Santa Úrsula, Caio faz projetos de decoração de dia e, à noite, apresenta shows com dublagens (lip sync), cantando e dançando de Whitney Houston a Beyoncé, passando por Rihanna em festas como a V de Viadão, na La Cueva e na La Paz. No próximo sábado, irá tocar como DJ na festa “Wallpaper”, na The Week.

— Minha irmã conta que quando eu tinha 8 anos, ela entrou no quarto e eu estava dublando escondido a Whitney Houston, acredita? — revela Caio, nascido e criado em Copacabana. — Eu era sempre aquele que queria quebrar padrões. Acho que por isso, decidi criar esta personagem em cima da experiência da viagem.

Aurora Boreallis tem perfil no Facebook e no Instagram. Como uma pop star, mostra o look do dia, a performance da noite, a balada com as amigas na noite e publica convites de festas, anunciando sua agenda. A cada postagem, recebe comentários como “dyva”, “rycah”, “histórika”, musa, gata e por aí vai.

Seu visual é o mais tradicional das quatro modelos. É feminino, glamouroso, fashion e delicado. Em algumas fotos, chega a lembrar a transexual Lea T.

— A Aurora é chique, it-girl, classic, fina. E sua essência é a mesma do Caio — diz, usando a terceira pessoa.

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