Como nascem os mitos femininos? Uma lutadora, guerreira, alguém que defendeu os seus e suas terras, que lutou contra opressões, que foi até onde nenhuma outra mulher havia ido antes, que desafiou o poder instituído pelos homens e por Deus. Um Deus branco.
Uma lenda que viveu cercada de pessoas, que foi amada e admirada, querida em casas, ilês, quilombos, teatros e ruas. Reinos inteiros com fronteiras reais e imaginárias dirigidos por mulheres feiticeiras que negociavam, vendiam, compravam, seduziam, plantavam e colhiam. Abriam mão dos detalhes, para não ceder no principal.
Era uma vez uma lenda, e três lendárias mulheres pretas me marcaram a semana passada.
Em Angola não há quem não conheça a Rainha Nzinga Mbandi, talvez só menos retratada em pinturas, estátuas e histórias lendárias que Agostinho Neto. Nzinga foi na verdade a grande monarca do Ndongo e da Matamba, e de Angola, antes de Angola existir.
Apesar de seis anos por aqui, só semana passada assisti à peça “A segunda conversão de Nzinga Mbandi”, da escritora Ana Andrade. No fim do ano passado conheci na mesa do bar o filho de Ana, Oluali. Na carona de volta pra casa, um trajeto curto, ele me contou (e encantou) com orgulho sobre a peça da mãe. Falava de uma Nzinga pouco narrada, uma Nzinga idosa, que precisava ceder ainda mais aos portugueses. A Nzinga que negociou a devolução da irmã, que vendeu inimigos, que se converteu ao cristianismo por estratégia e por amor às suas terras, aos seus, a si mesmo e ao poder. Uma lenda tão humana quanto mito. Tanto que, depois de sua morte, já aos 80 anos, o reino mudou de nome e passa a se chamar Reino de Nzinga.
Curioso ter sido o teatro esta semana que me tocou tanto porque foi nele que viveu a maior parte do tempo a senhora-diva-mito Léa Garcia. Ela contava que foi nos palcos sua estreia e consagração. O que seria de nós sem o Teatro Experimental do Negro e o que seria do Teatro Experimental do Negro sem Léa? Assim como Nzinga, Léa é um referencial, é uma das primeiras em tudo o que realizou e conquistou. Eu só fui mesmo conhecê-la em “Filhas do vento”, um épico familiar do cineasta Joelzito Araújo. Ju, interpretada por Léa, era a minha preferida. Lembrava minha tia Kelly, tinha sexualidade, leveza e piada, apesar das dores. Parecia ser uma mulher de sorte. A sorte de ficar, porque também era um filme sobre terras e sobre tudo o que nos conecta, para além do sangue. É um filme sobre ciclos, sobre histórias que se repetem e fios que cortamos pelo caminho, para que as dores não se repitam mais.
Então como, como deixamos mais uma ialorixá ser morta? Como continuamos a deixar que as histórias se repitam? Como ainda deixamos que, por séculos, mulheres sejam assassinadas por disputas de terra e por racismo? Em 1629, os portugueses atacaram o quilombo de Nzinga. Kafuxi, sua irmã, foi capturada e afogada em Luanda. Em 2023, Mãe Bernadete teve sua casa invadida, dentro das terras do Quilombo Pitanga dos Palmares, e foi morta a tiros. São tantas as camadas dessas histórias, são os nós que nos contam, são as reedições de quem pode ser morto como se fosse nada, num genocídio ancestral.
Uma das cenas mais bonitas do espetáculo é, sem dúvida, a “possessão” de Nzinga, com uma vigorosa interpretação. Depois, Mokambo, a irmã que consegue voltar, a ajuda a vestir e lhe entrega o seu machado. Para mim, não existe nenhuma explicação sobre termos sobrevivido (e vivido) a tudo isso que não passe pelo espiritual. Nada no mundo físico pode explicar o motivo de continuarmos aqui e permanecermos criando tanta beleza em meio a tamanha violência. É na força do machado que acreditavam Léa, Nzinga e Mãe Bernadete, que acreditamos. Um machado espiritual, mas também físico, que não se cala até que a justiça seja feita.