O camelo no buraco de uma agulha

A nós, pobres, resta rir e imaginar o que faríamos com tanto dinheiro. Eu compraria um avião e entraria na lista de mais poluidores do planeta

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A escritora e ativista Ana Paula Lisboa (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

A definição de pobre que repito pra mim mesma é qualquer pessoa que, se parar de trabalhar, morre de fome. Esta sou eu, uma pobre. Uma pessoa que precisa trocar sua força produtiva, tempo, energia, vitalidade, juventude, corpo, inteligência, saúde, por dinheiro.

Claro, eu não sou tão pobre que precise usar todo o dinheiro que eu ganho com necessidades básicas para manter meus órgãos vitais funcionando, como água e comida. Geralmente “sobra” algum para pagar aluguel, beber vinho argentino e português com meus amigos, andar de carro de aplicativos de transporte, pagar internet cara, comprar um celular novo, pintar a casa das cores que eu quiser, almoçar fora aos domingos, comprar roupas e outras coisas de que não preciso em sites da China. Mas, mesmo assim, eu sou pobre. E só não sou mais pobre porque trabalho feito uma condenada.

Como uma boa pobre, eu não confio em ricos, e, se os ricos forem bilionários, eu confio menos ainda. E olhe lá, não é preconceito, porque eu até tenho amigos que são. Mas é um pessoal cheio de estranhezas, que às vezes até gosta de se fantasiar de pobre.

Esses dias eu estava lendo sobre o quiet luxury, uma tendência de bilionários sobre a não ostentação. Afinal, um bilionário reconhece o outro, e não precisa fazer alarde com estampas e marcas. O mais estranho é que o atual homem mais rico do mundo construiu sua fortuna vendendo estampas e marcas.

Mal sabem que, no início dos anos 1980, Carlos Drummond de Andrade já havia escrito o poema “Eu, etiqueta”, e falado tudo sobre isso. Felizmente, sou uma pobre que teve o prazer de ler o texto na oitava série, e nunca mais desaprendi essa aula-poema sobre consumo.

Sou adepta da loud poverty: uma vez encontrei uma promoção de sabão em pó no supermercado e enviei mensagens para todos os amigos, também pobres, porque eles não podiam perder aquilo.

O moço que veio montar meu guarda-roupa essa semana me perguntou se havia visto a malsucedida expedição dos bilionários ao Titanic. Gildo estava, na verdade, tentando me evangelizar para o cristianismo e me fez lembrar das palavras de Jesus em Mateus 19:23: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus”. Como bom angolano, Gildo resumiu em uma frase tudo o que eu penso: “Os ricos têm muitos problemas”.

Segundo a revista Forbes, o mundo tem 2.640 bilionários e muitos deles estão dispostos a arriscar não a fortuna, mas a vida em aventuras como a do Titan, pagando US$ 250 mil pela experiência exclusiva de um passeio a quase quatro mil metros de profundidade.

Deve ser ruim pra cabeça a possibilidade de poder fazer qualquer coisa, de comprar qualquer coisa, e não se maravilhar com um pôr de sol. Ou precisar fazer coisas muito extremas, ir a lugares inimagináveis, para valorizar o que tem em casa. Enquanto isso, meu coração está disparado porque consegui comprar um guarda-roupa.

Eu me sinto privilegiada por poder pagar a terapia e “ver resultado”, enquanto eles poderiam pagar o terapeuta mais caro do mundo. Não é possível que alguém com tanto dinheiro na conta bancária continue precisando trair a namorada com meninas conquistadas no Instagram e não vá procurar um terapeuta.

A nós, os pobres, resta rir, fazer memes e imaginar o que faríamos se tivéssemos tanto dinheiro. Eu compraria um avião e entraria na lista de pessoas mais poluidoras do planeta, junto com a Taylor Swift e o Jay Z. Não me julguem.

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