O Feminismo surgiu para que Margarida pudesse ser mais! E o Feminismo Negro, para que Margarida pudesse ser ela mesma! – Por: Mariana Barbosa

“‘Margarida era rosa, bela, cheirosa e grampola
Tipo casa das camélia, gostosa!
Bromélia, toda prosa, a me enlouquecer
Bela, tipo um ipê, frondosa
É um lírio, causa delírios, mire-a
Vicio é vigiar, chique como orquídeas
Cabelos como samambaia e xaxim flor
Perto dela as outras são capim, pô
Girassol, violeta, beleza violenta
Passou aqui como se o mundo gritasse
Arrasa bi!
Flor de laranjeira ou primavera inteira
São flores e mais flores, todas as cores da feira, irmão…

Não apenas uma organização de mulheres; mas um movimento filosófico e político que tem por objetivo a garantia de uma sociedade equânime por meio do empoderamento de mulheres. Historicamente tratadas na esfera privada, pois fomos alocadas da porta de nossas casas para dentro, o feminismo é a oportunidade e o meio de trazer porta-à-fora as pendências que uma história de opressão nos deixou. Como margaridas, estivemos sempre na posição de expectadoras de nossa própria existência. Pensar independentemente não nos foi ensinado ou permitido e o caminho à emancipação, longo e tortuoso, parece não se esgotar, apesar dos importantes avanços. A emancipação de nossos corpos, o direito de estarmos inseridas no mercado de trabalho e a divisão de tarefas domésticas continuam sendo as nossas maiores pautas.

(Ô, essa nega é trepadeira, hein)

No entanto, em certo ponto dessa luta, percebeu-se que a trajetória de mulheres negras e brancas corria paralelamente, mas jamais foi a mesma. Com a exploração do trabalho escravo, assumimos papéis muito específicos na sociedade. Estivemos presentes na casa grande, mas também nas lavouras. A apropriação de nossa força de trabalho não foi suficiente. Nossa sexualidade se tornou uma caricatura dos desejos dos senhores de escravo e nos tornamos as inimigas das sinhás. Carregar na cor da pele a marca de uma sexualidade fetichezada não nos permite escolher como expressá-la. O estigma da cor-do-pecado é o nosso carro chefe; antes de saberem se falamos duas línguas, se somos boas com a matemática, se gostamos de escrever poesia ou se sabemos dançar, passamos uma mensagem involuntária de que estamos à disposição para satisfazer caprichos e prazeres alheios quando, como é comum à sexualidade feminina, não conhecemos a nós mesmas.

Na década de 1970, em seguida à luta pela garantia de direitos civis da população negra estadunidense, a teoria do feminismo negro se estabeleceu entre as dificuldades do não alinhamento ao feminismo branco usualmente praticado ou ao nacionalismo negro. Após a compreensão de que as mulheres negras estão submetidas a estruturas e relações de poder distintas ás que oprimem as mulheres brancas, as organizações de feminismo negro se debruçaram sobre três desafios primordiais: provar às demais mulheres negras que a luta feminista também era pra elas; demandar às mulheres brancas a divisão dos espaços de protagonismo e a legitimação da diversidade das lutas; e a luta contra as tendências misóginas no movimento negro geral.

[…]Você era o cravo e ela era a rosa
E cá entre nós gatinha, quem não fica bravo
Dando sol e água, e vendo brotar erva daninha
Chamei de banquete, era fim de feira
Estendi tapete, mas ela é rueira
Dei todo amor, tratei como flor
Mas no fim era uma trepadeira

A demonização de nossa luta tem sido umas das principais barreiras encontradas por nós, mulheres negras em face do empoderamento e da emancipação. Quando retomamos a posse de nossos corpos e adquirimos a independência de nossa sexualidade, deixamos de ser dignas. Quando fugimos ao padrão de comportamento, quando não nos submetemos, quando questionamos, quando nos tornamos independentes, quando nos negamos a reproduzir expectativas racistas e sexistas, quando estamos dispostas a batalhar pela igualdade racial plena; entendendo que nos é legítimo um espaço auto-gestionado de convergência e troca de experiência. Sendo ervas daninhas, ocupamos todos os espaços, desviando de todo racismo e misoginia. Sendo rueiras, ganhamos voz e notoriedade. Estar na rua significa ser reconhecida. E o reconhecimento é o primeiro passo para identificação. Queremos encrespar e enegrecer.

Mamãe olhou e me disse
Isso aí é igual trevo de três folhas
Quer comer, come, mas não dá sorte
Vai, brinca com a sorte

A razão de ser é, acima de tudo, a liberdade. Parece que o feminismo, da maneira como foi pensado, atendia apenas a demandas de mulheres brancas. Quando aquela figura estigmatizada do cosplay da mulher moderna – jovem, casada, mãe, executiva de sucesso, sexualmente bem resolvida e branca – se tornou referência, esqueceu-se que à mulher negra o público ainda não era possível. Daí surgem as domésticas como ponto referencial dessa reflexão. De negritude inquestionável, essas mulheres repetem nas casas de suas patroas a jornada de trabalho das quais não podem fugir nas suas. Para cada mulher branca trabalhando fora, há uma doméstica negra cumprindo sua jornada. Assim, a emancipação de um grupo está estabelecido na manutenção do outro em um papel de inferiorirazão. Mas não por que considero o trabalho doméstico inferior, muito pelo contrário, ele se faz essencial; mas por que é fácil traçar uma linha de raciocínio com a desvalorização dessa classe de mulheres negras. Seria muito questionar se a tardia “PEC das Domésticas” teria rompido a lógica da exploração do trabalho doméstico? É muito fácil tratar como “parte da família” quem não tem jornada de trabalho fixa ou legislação própria para assegurar garantias trabalhistas básicas.
Mulheres negras encabeçam famílias desde que o mundo é mundo. Mulheres negras ocupam o mercado de trabalho desde o fim do regime de escravidão. Mulheres negras são os entes unitários de uma equação social que as isola. Servimos e valemos até certo ponto. Não podemos querer ser trevo de quatro folhas e ser valorizadas como o tal, se o patriarcado e o racismo nos deram apenas três.

Tipo um jiló, Maria sem vergonha
Eu burro, chamei de trevo de quatro folhas
E o love enraizou, fundo
Mas você não dá, ou melhor, dá, mas pra todo mundo!
Eu quis te ver no jasmim, firmeza, no altar
Preza, “branquin”, olha, magnólia, beleza
Vitória régia, Brincos de princesa
Azaleia pura, Madre Tereza
Mas não, cê me quis salgueiro chorão
Costela de Adão, raspou os cabelo de Sansão
E tu vem, meu coração parte e grita assim
Arrasa bi…scate!
Merece era uma surra de espada de São Jorge
Um chá de Comigo Ninguém Pode

Porém, há que se tomar cuidado com os binarismos. O feminismo negro não se propõe um opositor do feminismo “branco”. Afinal, o que nos une é um objetivo comum que se mostra por caminhos distintos. Trabalhar o aborto como uma questão de saúde pública, enxergando que estatisticamente, nós negras lideramos os casos de morte. Combater a objetificação de nossos corpos, percebendo o ranço globeleza e mulata-tipo-exportação arraigados à pele negra. Sonhamos um mundo em que nenhum mulher mereça uma surra, ainda que de Espada de São Jorge, por não atender aos padrões e expectativas de um homem. Propomo-nos como uma possibilidade a somar na luta de todas as mulheres por uma sociedade equânime, nos resguardando do direito de sermos quem somos, de reconhecermos o papel que nos foi designado e de modificá-lo!

*Ao meu amigo Felipe, que me indicou a música e incitou esse debate!

Mariana Barbosa
Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília – UnB Membro da Comissão de Política Estudantil do CADir-UnB Militante do Coletivo Maracatu Atômico

Fonte: Blogueiras Negras

 

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