O protagonismo da periferia: pesquisa lista iniciativas com soluções inovadoras

Palavras como pertencimento são facilmente encontradas nos discursos daqueles que descrevem a forma como as iniciativas podem transformar a vida das pessoas. Para os moradores da Ilha de Deus, da comunidade do Bode e do bairro do Guadalupe, essas iniciativas resgatam raízes, valorizam espaços e potencializam identidades, fazendo com que eles se tornem agentes protagonistas de suas próprias histórias

Por Mirella Araújo Do Folha Pe

Caranguejo Uçá, na Ilha de Deus, é uma forma de resistência cultural e descriminalização da pobreza Foto: Arthur de Souza /Folha de Pernambuco

Atenuar as desigualdades e fortalecer a democracia. Esse foi o foco da pesquisa “Emergência Política Periferias”, que listou 100iniciativas com soluções inovadoras para os problemas socioeconômicos do País. Desta relação, 21 projetos estão no Grande Recife. A Folha de Pernambuco conheceu mais de perto três dessas ações que, por meio da cultura e da tecnologia, dão voz a pessoas, muitas vezes invisíveis dentro do cenário comunitário ao qual pertencem.

A pesquisa foi feita peloInstituto Update – organização da sociedade civil sem fins lucrativos que fomenta a inovação política na América Latina -, que também mapeou inovações nas periferias de Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A instituição contou com o apoio da Fundação Tide Setúbal, de promoção da justiça social, e da Fundação Ford, entidade privada global, sediada em Nova York, com missão de promover o bem estar humano.

O estudo pontuou cinco eixos que defendem os direitos humanos básicos: direito à existência, à memória, educação e cultura; à economia e bem viver; à participação social; e à ocupação do poder, que são replicados nessas comunidades por trabalhos sociais. Para a pesquisadora do Instituto Update, Jéssica Cerqueira, é a partir da gestão das urgências, do direito à existência, memória, ancestralidade, cultura, economia, bem viver e participação que os indivíduos revelam a emergência de práticas que transformam os territórios periféricos em laboratórios de soluções para os problemas do País.

“Eles buscam, em essência, a garantia de direitos já previstos na Constituição. E são espaços de criação, experimentação e modelos de ações e iniciativas para reduzir as desigualdades presentes no dia a dia. Uma política feita a partir dos problemas reais e por vozes que foram sistematicamente silenciadas pelo Estado. Se as instituições olhassem para as soluções propostas por essas iniciativas, aspolíticas públicas teriam muito mais impacto e seriam mais efetivas”, avalia Jéssica Cerqueira. A pesquisa “Emergência Política Periferias” pode ser acessada pelo site www.emergenciapolitica.org

Resistência na Ilha de Deus

O “Direito à Existência: defender os direitos humanos básicos para garantir a vida”. É dentro desse eixo que encontramos nacomunidade Ilha de Deus, que possui mais de cinco mil habitantes, a iniciativa Caranguejo Uçá. Uma forma de resistência cultural e descriminalização da pobreza. Num cenário em que as políticas públicas são praticamente ausentes, a Uçánasceu com a proposta de comunicar, por meio das mais diversas faces da arte e para desmistificar a imagem que perdurou por muito tempo na mídia, de que ali era um espaço violento e sem perspectiva. “Não temos esse sentimento de que estamos dando uma espécie de assistencialismo a estas pessoas. Nossas ações são voltadas para educação, saúde, a maneira como lidamos com o social, a economia e a política”, afirmou o jornalista Edson Fly, um dos integrantes do coletivo Uçá.

Dentre as ações que se destacam está a rádio comunitária Boca da Ilha, o Jornal da Maré, o Cine Mocambo, o grupo de percussãoNação da Ilha, o grupo de teatro Trilha e a Ciranda de Mulheres. Este último tem como foco algo além da preservação das raízes culturais da comunidade: promover o protagonismo das mulheres que construíram a história da Ilha de Deus. “A ciranda é um espaço para que as mulheres percebam a sua potencialidade. Existe uma fragilidade muito grande quando falamos de pescadoras, por conta das vulnerabilidades diversas. Precisamos fortalecê-las a partir do olhar para dentro do local onde elas vivem e trabalham, atrelando a isso a organização política do nosso direito, do nosso lugar de mulher e de negra dentro de uma sociedade machista e racista”, explica a bióloga e coordenadora da Ciranda, Eloisa Amaral.

Sem condições de criar seus cinco filhos, que foram entregues à adoção, a marisqueira Erica de Paula, 42, começou a mudar sua visão política e social, após as intervenções do Caranguejo Uçá. “Existe muito preconceito lá fora, mas a Ciranda trouxe muitas coisas boas na minha vida. É muito bom poder se cuidar e ser uma pessoa melhor”, declarou. Esse trabalho de pertencimento é desenvolvido pelo grupo, envolvendo de crianças até os de mais idade. Para a pedagoga Terezinha Filha, a escola deveria ser um espaço para que elas possam se encontrar e deixar transpor seus sentimentos. “A arte tem um papel transformador nisso e na organização interna do ser humano. Nós deixamos essas crianças muito à vontade para explorar seu potencial e para que ela se veja de outra forma, que não seja robotizada”, explica.

A trancista Priscila Maria dos Santos, 25, tem uma filha de oito anos e sempre discute sobre o poder de sua identidade. “Ela precisa conhecer seus direitos e nós ajudamos a inspirar outras pessoas também. Faço oficinas de tranças e, por meio disso, busco fortalecer essas crianças e mulheres que são negras e vivem numa sociedade machista e preconceituosa. Elas precisam crescer fortalecidas”, disse.

Cultura no Guadalupe

Outro eixo elencado pela pesquisa “Emergências Políticas Periferias”, é o “Direito à Memória, Educação e Cultura: defender os direitos conquistados para garantir a dignidade e identidade”, que mostra a história da Mãe Beth de Oxum. Nascida e criada em Olinda, ou como ela mesma desenha: na barreira do Rosário, parte mais alta, mais preta e mais pobre. Ela encontrou nos jovens do bairro deGuadalupe a esperança de transformação social e política por meio da preservação histórica e cultural alinhada à inovação tecnológica.

Ialorixá de um terreiro de matriz africana, Mãe Beth realiza há 20 anos a Sambada de Coco de Guadalupe. Como resultado do seu incessante ativismo cultural, ela coordena também o Ponto de Cultura Coco de Umbigada, que agrega ações de mídia livre com um estúdio de rádio comunitária e um laboratório de tecnologias – o LABCOCO. “O que sustenta o País é a economia de base, e acredito muito na colaboração. O que fazemos aqui é preparar os cidadãos para fazer uma sociedade melhor”, afirma Mãe Beth.

É com uma vista privilegiada para as duas cidades irmãs Olinda e Recife, que jovens de 15 a 29 anos  se juntaram na sede doCoco de Umbigada para desenvolver games roteirizados sobre a mitologia afro-brasileira. Em parceria com o Cooperforte da Fundação do Banco do Brasil, eles criaram uma plataforma educativa de jogos de aventura baseada nas histórias dos orixás, chamada de Contos de Ifá. Apesar de a lei 10.639/63 estabelecer diretrizes que garantam o resgate histórico para que as pessoas negras afro-brasileiras conheçam um pouco mais o Brasil e melhor a sua própria história dentro das escolas, existe uma lacuna muito grande no sentido de execução dessa matéria.

“Tínhamos necessidade de dar vazão ao conhecimento afro-brasileiro e, ao pensarmos de que forma seria viabilizado isso, foi que despertou a vontade de fazer um game para mostrar essa cultura”, destaca Daniel Luiz Albuquerque, um dos desenvolvedores formados pelo Ponto de Cultura – fomentado pelo Ministério da Cultura. Antes de participar do projeto, Daniel tinha como reflexo em sua vida a violência na comunidade, que terminava por oprimir suas perspectivas de futuro. “Os jovens se espelham no que está mais perto. Era isso que eu via na minha comunidade: o crime e o tráfico. Mas quando Mãe Beth trouxe o Ponto de Cultura, nossa vida mudou completamente”, disse.

Recentemente o LABCOCO fechou uma parceria com a The Trust for The Americas/ OEA e passou a integrar uma rede com mais 200 instituições das Américas. Eles estão com inscrições abertas para os cursos online de tecnologia da informação, inteligência artificial, internet das coisas e jogos digitais – todos certificados pela Microsoft. Essa e outras iniciativas já impactaram a vida de 800 jovens. “Muitos dos nossos alunos são cristãos (evangélicos e católicos) e estão aqui dentro de um terreiro de matriz africana vendo que a tecnologia é universal. Todos nós queremos ver uma sociedade mais preta e mais justa”, disse Daniel.

A trajetória de Mãe Beth incorpora bem esse espírito de quebrar paradigmas. E o apreço por tecnologia e a consciência do poder de comunicação que ela oferta, começou dentro de um dos símbolos de sua espiritualidade: os tambores. “Nós somos um terreiro que tem um tambor ancestral, que diz de onde vem. Essa foi a primeira grande tecnologia da humanidade. Os tambores foram códigos de comunicação das comunidades tradicionais”, explica.

Arte e inquietação no Bode

Dentro do eixo “Direito à Economia e Bem Viver: defender o acesso ao capital e recursos naturais para garantir a qualidade de vida”, o projeto multicultural Palaffite traz o conceito de fazer política no sentido de transformação social. “Todos nós nascemos como um ente político, principalmente quando você incide na comunidade e está dentro de espaços de discussões. E quando falo sobre a questão do ‘politicamente’, quero dizer sobre o poder de transformação social nessa comunidade”, disse Pedro Henrique dos Santos, 28, mais conhecido como Stilo Santos, um dos fundadores do Palaffite.

Criado em meados de 2008, sob uma palafita localizada naComunidade do Bode, no bairro do Pina, Zona Sul do Recife, o projeto cresceu e há sete anos tornou-se uma produtora e aceleradora cultural. São quatro bandas de rap e 12 artistas visuais produzidos pelo coletivo, além de 800 jovens impactados por diversas ações. “Paramos para pensar sobre como podemos mudar a vida das pessoas por meio do grafite e outras formas de cultura. A partir disso, conseguimos ver resultados imediatos entre os jovens que não tinham perspectiva de futuro”, comenta. Todas as ações são desenvolvidas sob o viés do Estatuto da Criança e do Adolescente, abrangendo jovens de 15 a 29 anos. A palafita cedeu, e o grupo ocupa a sede da Biblioteca Caranguejo Pensante – que possui um acervo de mais de três mil livros.

Usar a arte como forma de protesto contra o sistema fez os meninos e meninas perceberem que poderiam ter voz e usá-la para desmistificar o espaço que ocupam. O que existe neles é uma inquietação constante diante da ausência do Poder Público em alguns aspectos, como saúde, educação e qualidade de vida. “Criamos uma rede em que as pessoas chegam de outros lugares do País e se identificam com a nossa realidade. Tudo isso é uma forma de libertação. Quem mora aqui começa a ver que existe um mundo fora da Comunidade do Bode, mesmo que o acesso a outros espaços e ao escambo cultural seja muito difícil”, destaca Stilo. São jovens que, ao verem que existem pessoas em outros lugares pensando da mesma forma e com o mesmo propósito de futuro, começam a despertar para a valorização do sentimento de pertencimento. “Você que é negro e está na favela, você tem seu espaço de protagonismo. É muito importante quando você pega o microfone e vai cantar, assina o seu grafite, faz uma produção audiovisual e é reconhecido como cineasta periférico”, diz.

Esse reconhecimento de existência não só como artista, mas enquanto indivíduo, não passava pela cabeça do tatuador Túlio Andrade, 27 anos. Em suas palavras, ao relembrar como era a vida antes de conhecer o grafite, ele apenas vagava pelas ruas. “Eu não existia até eles me mostrarem ferramentas que poderiam transformar minha visão de futuro. Sempre gostei de arte, mas não tinha direcionamento. O projeto mudou muito minha vida”, afirma. Experiência semelhante do músico Allison Axel, 22 anos. Ele viu que poderia mudar sua vida e não virar estatística da criminalidade ao conhecer o Palaffite em 2011. “Encontrei aqui a possibilidade de fazer minha própria arte e acordar a galera para se envolver no caminho das ilusões, das coisas erradas. Eu estudei no Centro de Criatividade Musical do Recife e hoje sou voluntário aqui para não deixar morrer nossa cultura e nossa arte”, explica.

Ao percorrer as ruas da Comunidade do Bode não é muito difícil encontrar as intervenções feitas pelo Pallaffite por meio das edições do Pão e Tinta. De acordo com o grupo, foram mais de 200 ruas pintadas com a colaboração dos próprios moradores e dos grafiteiros, que também dão oficinas de arte e música para crianças. Além de trabalhar a revitalização da infraestrutura da comunidade, o grupo também busca, com o grafite, falar da história dos pescadores. É de autoria do Palaffite a grafitagem na ponte do Pina que faz menção àqueles que vivem tradicionalmente da pesca e que, dentro de seus barcos, possuem uma visão diferente da cidade. Por isso, a consciência de preservação do meio ambiente é outra ação trabalhada pela produtora em parceria com o Favela Verde. Há também a valorização do empreendedorismo local. “É extremamente importante mostrar que podemos viver daquilo que produzimos e entender as nossas necessidades de consumo”, destaca Igor de Melo, o Shell, 26, também fundador do Palaffite.

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