Isadora Faber, de 13 anos, aluna de escola pública de Florianópolis, ao criar o “Diário de Classe” no Facebook trouxe oportunidade de aprofundamento ao debate sobre a qualidade da educação. Usualmente restrito, na mídia, a resultados de Saeb, Prova Brasil, Ideb, indicadores quantitativos que se tornaram familiares a todos, a jovem apontou o papel do desenvolvimento crítico na sua formação como componente dessa qualidade. Permite, assim, a análise de direitos entrelaçados ao direito à educação. Por exemplo, o direito à liberdade de consciência e o direito à liberdade de expressão. Se para os professores o tema da liberdade de cátedra é incontestável como espaço da liberdade de expressão docente, para os estudantes o tema, embora crucial, não é simples. E o caso de Isadora é exemplar.
O direito à liberdade de consciência implica o direito à formação dessa consciência. Ou seja, é preciso nutrir a consciência, que não se faz sozinha, do nada. Para os que têm oportunidade de estar junto a crianças e jovens, o perigo é a atração pela facilidade de doutrinar, que não guarda nenhuma relação com alimentar consciências, mas com o abandono da ética e das possibilidades democráticas.
A história dos autoritarismos vividos no Brasil, apoiados por processos de doutrinação na escola e na propaganda pública (como o DIP, de Getúlio Vargas), marcou a mentalidade da sociedade e deixou uma herança pesada para a escola, que não está lavrada em papel, mas nem por isso é menos atuante.
Novos elementos
Se as condições materiais de trabalho nas escolas públicas muitas vezes deixam tanto a desejar, como Isadora deixou às claras, afetando a atuação de cada docente, as marcas do passado também dificultam que seja melhor o trabalho educativo. Observe-se a primeira reação da escola: de chamar os pais de Isadora para sinalizar os riscos de que a menina continuasse com seu “Diário de Classe”. Calada e omissa, seria acolhida. Crítica, inconformada e informando o público, era vista como ameaça e, portanto, naquela ótica, merecendo a resposta da retaliação, além de destiná-la, o quanto possível, ao ostracismo no interior da instituição.
Se, por um lado, no Brasil, é crônica a falta de prática de prestar contas do que se faz com o bem público, com transparência (a mal traduzida accountability), por outro, o quadro está mudando. A criação da Comissão da Verdade, ou as transmissões de julgamentos do STF, como o agora em andamento, sinalizam que, à imperiosa necessidade republicana de transparência e correção para os atos públicos, soma-se o direito da sociedade de ser informada de maneira adequada, em tempo real, na sua relação com o Estado. A educação pública é fundada na escola pública, mas vai além porque é continuada e para toda a vida. Cada um que pode testemunhar a forma como sofrerão consequências os que agiram à margem da lei, desrespeitando o bem público e violaram direitos, recria-se como cidadão em sua cidadania, ao ver a história do país sendo redirecionada pela via da Justiça, do Estado em processo de reflexão e reconstrução. A prática efetiva da Justiça é educativa.
A consciência de Isadora, ao afirmar que a escola pública é paga, sim, pelos que a utilizam, por meio de impostos, sabendo que deve, por isso, cobrar dos governantes, é alvissareira, indicando novos tempos. As redes sociais e, de modo mais amplo, a popularização da internet, trazem novos elementos com os quais a escola ainda não sabe lidar, chegando mesmo a sentir-se frente a dilemas cada vez que surge algo inusitado.
A menina tem a palavra
A divulgação de casos dramáticos em que a rede foi usada para fins de violação de direitos de crianças e adolescentes vê-se substituída pela possibilidade do uso construtivo de tão relevante ferramenta. São ainda incipientes as pesquisas a respeito desse importante fenômeno contemporâneo, em especial na forma como atinge crianças e jovens. No caso de Isadora, demonstra um potencial rico, de formação de consciência para muitos e de exercício de liberdade de expressão que não poderia transformar-se, por seu mérito, em ocasião de represália violadora de seus direitos.
A prática de levar a público sua opinião e expor-se, enquanto expõe a realidade escolar em que vive, significa não apenas o exercício e a busca de solução, mas ao mesmo tempo, pela dimensão da publicidade, um paradoxal risco seguro. Porque quantos mais tomaram conhecimento de seu “Diário”, mais protegida Isadora ficou de que lhe infligissem qualquer arbitrariedade. Habilmente, a Secretaria de Educação entrou em campo, amparando a escola e sua diretora, procurando mediar o alegado “dano à imagem” da escola que nada mais era que a expressão efetiva do que ali se passava. A comparação a um tipo de “ouvidoria”, proposta pela secretaria, indica abordagem mais adequada que protege a escola mas não garante o cotidiano da menina, cujos méritos são tão notáveis quanto o apoio que seus pais lhe deram, mas que pede ainda proteção. Para demonstrar que efetivamente encara Isadora como ouvidora, já que ouvidores ou ombudsmen sempre têm garantias em relação ao que fazem e a sua segurança pessoal, a secretaria precisa apoiá-la e valorizá-la. Isadora – felizmente – tem a palavra. Ficamos à espera.
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[Roseli Fischmann é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, docente da pós em Educação da USP]
Fonte: Observatório da Imprensa