Os Ciscos do Brasil e o racismo de todo dia

FONTEPor Aquiles Lins, do Brasil 247
(Foto: Twitter/Renatoafjr)

“A resistência de Renato Freitas nos ensina que, se por um lado muitos Ciscos morrem no meio do caminho, outros se salvam e se multiplicam. Ocupam espaços de poder e dizem em alto e bom som: racistas, vocês serão combatidos”, escreve o jornalista Aquiles Lins, editor do 247, sobre a prisão do vereador curitibano

“Cordão de ouro branco vale quanto pesa né. Praça da Sé na loucura da miséria. Maluco vai quer tipo é pra se manter de pé. Sua coroa tá ali, sabe qual que é. Jogada na calçada, calça rasgada, muito louca de cachaça, chamam de vaca. Está sem chance, está sem nada. Vadia velha com um filho, jogado às traças. Mas que nada, a rua abraça. Tá crescendo Cisco menino, desafortunado do gueto vai vendo. Ele quis ir pra escola, mas a sua história, vai já era…”

música Cisco era o que tocava na caixa de som dos jovens que jogavam basquete naquela sexta-feira de feriado, tempo bom, na praça de 29 de Março, no centro de Curitiba. Clássico da banda paulistana DMN, alçada ao panteão do rap brasileiro no disco “Saída de Emergência”, de 2001, a música retrata a história de Cisco, um menino que nasceu sem perspectivas, praticamente já sentenciado à morte. Uma realidade comum a milhões de brasileiros e brasileiras, em sua absoluta maioria negros e negras. 

Markão II, Elly, Max e DJ Slick tocavam a meio volume na caixa de som, enquanto os jovens, em sua maioria oriundos da periferia curitibana, disputavam as cestas na quadra. Um dos jogadores, Renato estreava o ‘tenisão’ zerado de basquete, comprado especificamente para tirar o “ferrugem” de mais de um ano de pandemia, sem atividade física. Não tinha barulho, não tinha álcool. A ‘vibe’ transpirava positividade. E foi justamente isso que incomodou o “sistema”. Neste momento apareceu a Polícia Militar, com a missão de lembrar aos jovens periféricos e negros que a realidade de Cisco se aplicava a eles. 

Investido na autoridade de “Guarda Belo”, conferida pelo fascismo que foi alçado à Presidência da República, o policial militar quis fazer de sua voz a lei, como o fizera outro PM, dias antes, em Goiás. O policial paranaense argumentou que os jovens perturbavam o sossego público com a música. Mas não havia reclamação, princípio sine qua non para a ação. Contestado, agiu com truculência, tomou a caixa de som, quebrou o equipamento e levou-o consigo. Foi acusado de racista e de roubar o eletrônico, que, apesar de danificado, seguia tocando DMN num ato voluntário de resistência.

Renato e seu amigo David foram presos. Questionado sobre o porquê, o PM não respondia. Mas a resposta estava dada, só não podia ser vocalizada pelo braço coercitivo do estado. Os dois jovens foram detidos por serem negros, e por ousarem ocupar um equipamento público da classe média branca curitibana com sua alegria. O jogo de basquete foi desfeito. Os dois foram injuriados e levados no ‘navio negreiro de rodas e sirene’, também chamado de viatura, para a delegacia. Lá passaram mais de 4 horas. Por fim, foram libertados. O PM autor do ato racista até o momento não foi afastado do cargo para um curso de reciclagem. O estado do Paraná não parece demonstrar interesse em alterar sua conduta em relação aos pretos.  

O jovem Renato é Renato Freitas, vereador de Curitiba. Eleito pelo PT com 5.097 votos. Um representante legítimo da periferia no Poder Legislativo Municipal. Mas não foi tratado como ser humano, como cidadão, pelo estado. Renato Freitas não foi mais um Cisco brasileiro por muito pouco. Ele sobreviveu ao “campo de extermínio” da periferia brasileira, como relatou à TV 247. E correu pelo Direito. Se formou advogado. Defendeu um mestrado na Universidade Federal do Paraná. Desafiou as estatísticas. Mas isso não satisfaz o estado racista brasileiro.

Apesar da cena condenável, a resistência do jovem Renato Freitas, de seu amigo David e dos demais jovens que jogavam basquete na praça 29 de março nos ensina que, se por um lado muitos Ciscos morrem no meio do caminho, outros se salvam e se multiplicam. Ocupam espaços de poder, de comunicação, e dizem em alto e bom som: racistas, vocês serão combatidos.  

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