Os desafios para efetivar gestão democrática em conferência de educação no Brasil

Um PNE Pra Valer requer o fortalecimento da participação de movimentos sociais e sociedade civil organizada nas instâncias e processos de gestão democrática em educação

FONTEPor Nana Soares, do De Olho nos Planos
II Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (Foto: Divulgação)

A Conferência Nacional de Educação (Conae), que acontece de 28 a 30 de janeiro em Brasília, tem uma missão nada simples: formular as diretrizes, metas e estratégias que irão construir o novo Plano Nacional de Educação (PNE). Com o tema “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”, a Conferência foi convocada em caráter extraordinário, assegurando a presença da sociedade na construção do novo PNE, que ainda não tem texto consolidado. 

A ideia é que dessas discussões, que incluem a avaliação dos problemas e necessidades do PNE atual, saia o documento de referência para o próximo Plano – cuja elaboração fica a cargo do Fórum Nacional de Educação para posterior apresentação no Congresso. Serão sete eixos de discussão sobre o PNE. 

“Conferências são tecnologias sociais que representam uma ruptura com a manutenção do status quo dominante, uma vez que a participação social é um direito e, se é um direito, é para todas as pessoas”, resume o co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), Adão de Oliveira, que ressalta que “se não há participação social efetiva, há continuidade do sistema escravagista, em que uns decidem pelos outros”. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da Faculdade de Educação da USP e membro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) explica que há vários mecanismos possíveis de participação social para viabilizar a gestão democrática, como Conselhos, fóruns, conferências, consultas públicas, além da eleição de diretores e outros gestores. “Nenhum desses mecanismos foi dado, foram todos forjados numa luta – quem defendeu a gestão democrática sempre foi, historicamente, os movimentos sociais”, diz o professor. 

Seguindo o processo que é comum às Conferências, as etapas municipais e estaduais da CONAE precederam a etapa nacional, sendo realizadas em 2023. Nelas, delegadas e delegados e seus suplentes foram eleitos para a última etapa. 

CONAE 2024: retomada do processo democrático

Em um Brasil que tenta se recuperar de anos de erosão da democracia e da participação social desde o golpe parlamentar de 2016, a efetivação da gestão democrática em espaços institucionais como a CONAE permanece sendo um desafio. “A gestão democrática é um princípio constitucional desde 1988, é relativamente novo comparado a outros princípios como a obrigatoriedade e a gratuidade de serviços como a educação”, explica Rubens, da FEUSP e da Fineduca. 

Esta será a quarta edição da CONAE – as outras foram em 2010, 2014 e 2018 -, e é marcada pela retomada do diálogo entre governo e sociedade civil, relação que foi interrompida na gestão Bolsonaro que esvaziou o sentido da CONAE de promover um debate amplo e democrático sobre os rumos da política educacional do país. Foi quando movimentos sociais e a sociedade civil organizada deixaram de enxergar na CONAE um espaço legítimo de discussão e de avanços democráticos norteados pela Constituição e pelo PNE. E quando diversas entidades do campo educacional se articularam e criaram, em resposta, o Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE). O FNPE organizou, em 2018 e 2022, a Conferência Nacional Popular de Educação (Conape), e monitorou e defendeu o PNE paralelamente às instâncias oficiais. 

“Todo o processo de construção democrática, previsto na Constituição e que vinha se concretizando desde o PNE de 2001, foi alterado”, reforça Adão de Oliveira, co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo e integrante do Fórum Municipal de Educação da capital. “O [atual] PNE teve interferência e influência de todos os setores, da esquerda à ultradireita. Tanto no FNE como no CNE tínhamos o mais próximo possível da democracia. Mas após o impeachment da presidenta Dilma, o FNE foi praticamente extinto em sua finalidade, o MEC passou a ser o mandatário de tudo. Foi um crime”, lembra o ativista. 

Rubens Barbosa de Camargo, professor sênior da FEUSP e membro da diretoria da Fineduca, também posiciona a época do impeachment de Dilma Rousseff como uma ruptura no que vinha sendo construído e implementado pouco a pouco em termos de participação social. “Quando o Fórum Nacional de Educação teve sua composição alterada, ele ainda era entendido como um órgão de Estado com a função de organizar conferências e acompanhar a efetivação do PNE vigente. Mas o Brasil é um país de pouca tradição democrática, onde parte da população não acredita nessa perspectiva. Exemplo foi a extinção dos muitos Conselhos em 2019 [um dos primeiros atos do governo Bolsonaro], o que ilustra a importância do princípio da gestão democrática tornar-se parte das unidades escolares e dos sistemas de educação”, opina. 

Adão, do MNU, vê com preocupação o fato de que mesmo após a derrota da extrema-direita nas urnas e com a retomada do processo democrático nem todas as mudanças tenham sido revertidas. “Esse ataque à participação social prevaleceu até o fim do governo Temer, se agravou no governo Bolsonaro, mas ainda não se reverteu no governo Lula, porque o FNE e o CNE ainda não voltaram totalmente à antiga composição”, explica ele. 

Para o professor Rubens Barbosa de Camargo aprimorar a democracia é um trabalho longo e de aprendizado contínuo. “É um problema que só se resolve quanto mais praticamos a própria democracia. Temos vários Conselhos de Educação que estão tomados por grupos de origem neoliberal, que pouco pensam no interesse público, e precisamos sim debater essas composições, mas são problemas que aprendemos conforme os vivenciamos. Com o próprio PNE que está se encerrando agora já aprendemos muito”. 

Desafios à efetivação da gestão democrática e movimentação conservadora

Coordenada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), a CONAE tem papel fundamental na construção do PNE que, por sua vez, é o principal instrumento da política educacional brasileira. O que é levantado e debatido na Conferência deve ser incorporado no texto do Plano aprovado. Por isso, é vital que estejam representados, na Conferência, os diversos setores da sociedade brasileira e das comunidades escolares: trabalhadoras e trabalhadores da educação, estudantes de diferentes níveis, vozes da educação do campo, quilombola, indígena, dos movimentos negros, LGBTQIA+, de mulheres, da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais em geral. É somente com participação efetiva desses grupos que as políticas educacionais podem refletir as reais necessidades do país e caminhar no sentido da redução das desigualdades educacionais. É urgente pautar, por exemplo, a incorporação das perspectivas de gênero e raça de forma articulada em todos os Eixos do Documento Referência que subsidia a CONAE e o novo PNE. 

Mas há desafios para a etapa nacional da CONAE 2024: desde que foi convocada, a CONAE tem recebido críticas pelo curto intervalo entre as etapas, que podem ter simplifcado ou encurtado o debate em uma agenda tão fundamental. Esta edição da conferência conta com uma delegação menor do que a de 2014 – a última antes do rompimento do processo democrático – são cerca de mil delegados a menos. Além disso, os recursos não custeiam as despesas de todas as pessoas participantes, apenas de quem tem status de delegada/o. E movimentos sociais e sociedade civil organizada comprometidos historicamente com as agendas dos Direitos Humanos não foram considerados Setores nas eleições de delegadas e delegados nas etapas municipais e estaduais. 

Esses aspectos podem fazer com que alguns grupos de atuação histórica, como o Movimento Negro Unificado (MNU), fiquem de fora. “O MNU teve indicação como delegado e cheguei a passar meus dados para o Ministério. Recebi informações sobre a emissão da passagem aérea, mas depois fui informado que houve uma ‘revisão’ e que nossa presença seria avaliada. Até o momento, ainda não recebi nenhuma outra mensagem de confirmação ou não”, narra Adão de Oliveira, do MNU. 

São limitações e obstáculos que afetam a efetivação da gestão democrática em educação. “Se isso está acontecendo é porque mudanças em sentido antidemocrático permanecem nesse governo, porque não houve força social suficiente pra alterar isso”, critica o ativista, reforçando que o movimento negro tem propostas concretas para apresentar na CONAE, como um Plano Nacional de Implementação da lei 10.639/03, que prevê recursos específicos para esse fim. 

Somando a esses problemas, matéria recente do Intercept Brasil mostrou que bolsonaristas organizaram força-tarefa para incidir na conferência, tentando pautar temas como Escola Sem Partido e educação domiciliar, além de planejarem fortalecer perspectivas reacionárias, como uma visão reducionista de “família” que teria primazia em relação às políticas  públicas. Segundo a apuração do Intercept, os grupos – que aparentemente não têm representação entre delegadas e delegados eleitos para a Conae – buscam não apenas tumultuar o evento, mas ampliar a influência das frentes ultraconservadoras nos estados e municípios, que também elaborarão seus planos de educação após a aprovação do novo PNE. Para o professor da FEUSP Rubens Barbosa de Camargo, o embate com visões opostas faz parte do processo, desde que em uma perspectiva democrática. “É curiosa a tentativa [da direita] de ocupar espaços institucionais, coisa que não permitem quando são eles que estão no Poder. Por isso sentimos que as forças não estão balanceadas. Mas na Conferência leva a melhor o setor que estiver mais organizado, e acredito que sejam os progressistas”, avalia. No entanto, como ele reitera, é importante não perder de vista que as batalhas por um PNE Pra Valer estão apenas começando. “Embora tudo tenha sido meio apressado, é muito possível que saiamos da CONAE com um bom texto, mas ele vai precisar ser aprovado pelo Congresso, e é lá que a disputa é muito mais incoerente e complicada. A briga que vem depois torna ainda mais crucial sair com um bom texto-base da Conae”, acrescenta. 

Serão muitas as frentes de batalha da Conferência que se inicia nesta semana, e que, embora marcada por muitos desafios e pelo retrocesso democrático que assolou o Brasil na última década, ainda tem o potencial de construir as bases para o retrocesso ser revertido. Nas palavras do professor Rubens: “apesar de todos os percalços na construção da CONAE, não tenho dúvida que o que temos é muito melhor do que se o texto do PNE fosse produzido em um gabinete e sem nenhuma participação. O fato de muitos grupos não verem a perspectiva democrática como fundamental é exatamente o que torna mais importante do que nunca demonstrar que ela é possível, importante, viável e apresenta as melhores soluções para a educação nacional”.

BAIXE A CARTILHA “Em defesa de processos participativos e gestão democrática para a construção de um novo PNE” 

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