Os efeitos da ditadura nas Favelas do Rio

O historiador Marco Marques Pestana, que faz doutorado na UFF sobre a relação entre a ditadura empresarial-militar e as favelas e demais territórios populares do Rio de Janeiro, escreveu artigo para o Favela 247 apontando a ausência das favelas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade e sobre os impactos do período ditatorial nos territórios populares: “As sempre emblemáticas favelas da cidade que, especialmente até o ano de 1973, foram objeto de políticas de remoções sistemáticas, lastreadas em ações de extrema violência social, política, econômica e simbólica”, disse Pestana, que conclui: “Afinal, a militarização do cotidiano de parcelas expressivas da classe trabalhadora pela via das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) não nos permite nutrir ilusões excessivas acerca da democracia que emergiu das entranhas daquela ditadura”

Por *Marco Marques Pestana, no Favela 247

A ditadura empresarial-militar e as favelas do Rio de Janeiro

As favelas como objeto ausente do relatório da Comissão Nacional da Verdade

Na última quarta-feira, 10/12, foi oficialmente apresentado o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que funcionou desde maio de 2012 com o propósito de “(…) examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” 1. Como reconhecido pelo próprio relatório, foi especialmente analisado o período compreendido entre os anos de 1964 e 1985, tomados como balizas cronológicas para o último regime ditatorial implantado no Brasil.

Sem dúvida, o relatório cumpre importante papel ao representar o reconhecimento oficial de crimes cometidos por agentes do Estado, sintetizar parte do conhecimento já produzido sobre as graves violações de direitos humanos (como assassinatos, desaparecimentos e torturas, entre outras) e apresentar algumas novas informações. Esse trabalho, no entanto, não deve ser tomado como o ponto final do processo de construção do conhecimento acerca da ditadura e seu sentido histórico. Pelo contrário, existe ainda ampla margem para aprofundamento dos tópicos abordados pelo documento, bem como para a realização de investigações acerca de outros assuntos.

No caso específico da cidade do Rio de Janeiro, cabe destacar a ausência de um olhar mais detido para algumas das áreas em que a ditadura atuou de forma mais estruturada: as sempre emblemáticas favelas da cidade que, especialmente até o ano de 1973, foram objeto de políticas de remoções sistemáticas, lastreadas em ações de extrema violência social, política, econômica e simbólica. Vejamos, portanto, o que a análise mais pormenorizada da atuação ditatorial nas favelas – com ênfase nas remoções – pode nos dizer sobre esse período de nossa história.


O estágio atual das pesquisas

No campo acadêmico, os primeiros estudos acerca das remoções de favelas cariocas foram realizados ainda durante a vigência do regime ditatorial, com forte concentração na área da Antropologia. Enfatizando a análise dos processos de remoção propriamente ditos (seus mecanismos e formas de execução), bem como de seus resultados e consequências para a vida dos afetados, esses trabalhos forneceram um importante ponto de partida para a compreensão das políticas remocionistas.

Em seu conjunto, apontaram como a ênfase das remoções em favelas localizadas nas regiões mais valorizadas da cidade atendia a interesses imobiliários e do capital do setor da construção civil, além de aprofundar a segregação urbana das classes sociais. Aludiram também a muitos dos instrumentos coercitivos empregados na viabilização das remoções (como a ameaça da retirada de investimentos em infraestrutura nas favelas a serem removidas, o emprego direto e maciço de forças policiais, entre outros), bem como às dificuldades sociais e econômicas enfrentadas pelos removidos (que variavam desde a perda de empregos, até a impossibilidade de arcar com as parcelas para compra dos apartamentos para os quais eram transferidos, passando pela perda de laços de sociabilidade longamente estabelecidos)2.

Apenas mais recentemente, já no século XXI, a História como disciplina institucionalizada passou a se interessar mais de perto por esse objeto, lançando mão de abordagens próprias e novas indagações3. Essa chegada relativamente tardia ao tema possibilitou, entretanto, que os historiadores recorressem a fontes impossíveis de serem consultadas quando os trabalhos clássicos da Antropologia foram elaborados, aprofundando a compreensão do processo em questão. Com efeito, apenas muitos anos após o término da ditadura uma grande massa de documentos passou a ser disponibilizada (ainda que a divulgação completa desse material ainda esteja distante), especialmente aqueles produzidos e/ou referentes à atuação do aparato repressivo ditatorial.

Exemplo significativo das potencialidades dessa trilha foi conferido por Juliana Oakim, que localizou Inquérito Policial-Militar (IPM) de 1969, em que Abdias José dos Santos, então dirigente da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), foi indiciado por atuar contra a política ditatorial das remoções4. Dentre outras possibilidades abertas, esse tipo de documentação poderá servir de base para a construção de listas mais completas de moradores de favelas diretamente atingidos pela repressão estatal (com prisões, indiciamentos, torturas, desaparecimentos, etc), considerando-se, ainda, que esse contingente populacional e suas associações permaneceram sendo objeto da atenção do aparato repressivo mesmo após o término do período de remoções sistemáticas, em 19735.
Os avanços necessários

Entretanto, a recuperação dos detalhes da política de remoções sistemáticas – e da atuação do aparato repressivo ditatorial em seu bojo – será tão mais expressiva quanto mais se prestar ao efetivo avanço na compreensão do sentido histórico daquele regime. Pela atuação da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM) – que subordinou uma série de órgãos da Guanabara para empreender a remoção de mais de 90.000 moradores de favelas no período 1968-1973 – é possível, por exemplo, entrever a crescente centralização do poder político na esfera federal, limitando a autonomia dos governos estaduais.

Indo além, a própria execução de remoções sistemáticas constituiu forte indicador do caráter classista do regime ditatorial. De um lado, a remoção das favelas localizadas nas regiões mais valorizadas da cidade constituía uma reivindicação articulada de setores do empresariado dos ramos imobiliário e da construção civil, pelo menos, desde meados dos anos 19506. Por outro lado, essas mesmas remoções foram levadas a cabo a despeito das inúmeras manifestações contrárias dos próprios moradores das favelas atingidas, quase sempre debeladas pela força da repressão7. Essas gritantes diferenças entre os tratamentos dispensados a esses agentes evidencia que o estudo sistemático desse processo pode, por sua vez, aclarar as lacunas dos trabalhos revisionistas que, nos últimos anos, tem diluído os laços sociais da ditadura numa sociedade abstratamente considerada, contribuindo para ocultar seus responsáveis e beneficiários8.

Por fim, é de fundamental importância lembrarmos que, se a observação da atuação estatal nas favelas nos ajuda a compreender o caráter da ditadura, esse procedimento é igualmente verdadeiro para o contexto atual. Afinal, a militarização do cotidiano de parcelas expressivas da classe trabalhadora pela via das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) não nos permite nutrir ilusões excessivas acerca da democracia que emergiu das entranhas daquela ditadura.
Notas

1- BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Vol.1, p.15.

2 – Os exemplos mais consistentes desse grupo são, sem dúvida, os seguintes:PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Trad. de Waldívia Marchiori Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.;VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.;ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2a ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

3 – Programa de Remoção e Habitação Provisória (1960-1970). Dissertação de Mestrado em História. Niterói: PPGH/UFF, 2006.; e BRUM, Mário Sérgio Ignácio. Cidade Alta: história, memórias estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História. Niterói: PPGH/UFF, 2011.

4 – OAKIM, Juliana. Urbanização sim, remoção não”. A Atuação da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara nas décadas de 1960 e 1970. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: PPGH/UFF, 2014. pp.128-130.

5 – IDEM. Ibidem. pp.174; 177-180.

6 – PESTANA, Marco Marques. A União dos Trabalhadores Favelados e a luta contra o controle negociado das favelas cariocas (1954-1964). Dissertação de Mestrado em História. Niterói: PPGH/UFF, 2013. pp.165-168.

7 – OAKIM, Juliana. “Urbanização sim, remoção não”… Op. Cit.

8 – Para uma amostra dessa produção revisionista, ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

 

*Marco Marques Pestana é Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Colaborador do blog coletivo Capitalismo em Desencanto.

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