O Brasil registrou, nos primeiros seis meses de 2021, uma média de 282 denúncias de crimes contra crianças e adolescentes por dia, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH). A maior parte delas (121) é de maus-tratos, e 52 são de abuso sexual, como estupro ou assédio. E o cenário pode ser ainda pior: para especialistas, os dados oficiais são subnotificados.
Desde que a pandemia começou, em março de 2020, o número de denúncias caiu de 29 mil no primeiro trimestre para 20 mil nos últimos três meses do ano. Em 2021, voltaram a subir, e atingiram 25 mil entre abril e junho.
— Isso não significa que o número de violações caiu em 2020. Os registros é que diminuíram, por causa do isolamento social. Em 2021, mais serviços voltaram a funcionar presencialmente, e isso reflete o novo aumento — afirma Marta Volpi, assessora de políticas públicas da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente.
Durante a pandemia, o isolamento social — cientificamente reconhecido como indispensável para impedir a transmissão de Covid-19 — dificultou muito as denúncias de violações contra crianças e adolescentes. Isso porque 80% dos casos acontecem dentro da casa da vítima, e 65% dos suspeitos são os próprios pais, mães, padrastos ou madrastas — o que deixou as violações escondidas no âmbito familiar dos agressores e suas vítimas.
Para piorar, em 2020, diferentes instituições públicas que funcionam na rede de proteção das crianças ficaram fechadas funcionando remotamente. A principal delas, segundo a psicóloga e ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) Iolete Ribeiro, foi a escola.
— Em 2021, já há algum retorno de muitas escolas e serviços que passaram ao presencial em alguns períodos. Isso dá maior acessibilidade aos casos. A criança fala com o professor ou os educadores detectam uma mudança de comportamento e ficam alertas para acionar a rede de proteção e descobrir o que está acontecendo.
Levantamento de O GLOBO feito nos cem primeiros dias letivos deste ano (de 8 de fevereiro a 28 de junho), mostra que 18 redes estaduais de ensino ficaram 100% do tempo em ensino remoto. Duas delas estiveram 11% do tempo abertas, cinco ficaram entre 20% e 50% abertas e duas (São Paulo e Santa Catarina) abriram desde o começo do ano e não voltaram ao remoto em nenhum momento.
Pouco antes da pandemia, uma menina de 12 anos entendeu que vinha sendo estuprada por seu pai nos últimos dois anos a partir de uma palestra sobre o assunto.
— A criança não percebia que era vítima de abuso sexual. Não sabia que aquilo que acontecia com ela era estupro. Só soube quando viu uma profissional falando sobre isso na escola — diz Clayse Moreira, coordenadora técnica do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no Rio de Janeiro.
No dia da palestra, logo após chegar em casa, a menina apresentou muito medo de ficar sozinha com o pai. A mãe percebeu algo estranho, e a criança contou que ela e a irmã, de 10 anos, eram abusadas.
— Esse caso só veio à tona porque havia a escola. E violações como essa continuam ocorrendo, mas ninguém está sabendo. A rede pública precisa encontrar estratégias para garantir a proteção dos alunos — afirma Moreira.
No entanto, de acordo com Denise Campos, coordenadora do Cedeca Rondônia e autora do artigo “Exploração sexual de crianças e adolescentes: reflexão sobre o papel da escola”, a visão do atual comando do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos desestimula atividades como a que abriu os olhos da criança de 12 anos.
— A posição do ministério é a de que não é para falar disso, que é questão de família. Mas na medida que a escola não trabalha isso, acaba colocando a criança em mais risco ainda — afirma Campos.
Risco no ambiente virtual
Na avaliação de Marta Volpi, um professor conseguir identificar e denunciar situações de violência por meio das aulas remotas, levando em consideração a desigualdade de acesso à internet, é quase impossível.
Pesquisa divulgada em março pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) mostra que o ensino remoto no Brasil foi, majoritariamente, a combinação de aulas por WhatsApp com materiais impressos, nos quais os professores tinham pouco ou nenhum contato com seus estudantes.
— Quando a pandemia acabar e as pessoas voltarem às suas atividades normais, a gente precisa de muita campanha para reforçar a importância das denúncias e a atenção nas crianças e adolescentes que podem ter vivido violações nesse período — diz Volpi.
Os dados da ONDH mostram ainda que o número de violações no ambiente virtual cresceu 80% durante a pandemia. E, das 1.277 denúncias relacionadas à internet em 2021, 623 envolvem crimes sexuais, e outras 382, exposição erótica de crianças.
Enquanto isso, as violações em via pública caíram 45%, e aquelas realizadas em instituições de ensino, 63%. Considerando apenas os casos de crimes sexuais (estupro, abuso sexual, exploração sexual, abuso sexual psíquico e assédio sexual), caíram de 89 entre janeiro e março de 2020 para 7 nos últimos três meses do ano.